«Comecei por te contar primeiro, Clarinha, como era a viagem para a terra do meu pai.
Uma vez lá chegada, depois daquela longa viagem, vinha a realização da justa expectativa. Um contaste completo com a minha vida diária em Lisboa.
Por um lado uma liberdade enorme, a aldeia, pequena, parecia-me constituída apenas por familiares. E não me enganava assim muito, porque para além da família ser grande – sobretudo se contássemos com a família muito alargada, os primos dos primos dos primos – éramos também quase todos parentes pelos laços dos baptismos, todos eram padrinhos e madrinhas, e assim compadres uns dos outros. Eu sabia que era conhecida por toda a gente e, com essa confiança, podia andar à vontade por todo o lado que nem me perdia nem me acontecia mal nenhum.
Mas, por outro lado, notava a falta de alguns confortos, rotineiros em Lisboa e desconhecidos lá. Como não havia água canalizada nem electricidade isso implicava toda uma rotina diferente, e a higiene tornada mais complicada sem a casa-de-banho – lavava-me ‘por partes’ e o banho, numa grande celha, apenas duas vezes por semana. Deitava-me ainda mais cedo, porque os serões à luz dos candeeiros de petróleo eram curtos, dormindo num quarto, vulgar lá mas estranho para mim: a cama e mesa-de-cabeceira ficavam numa ‘alcova’, um quarto interior que comunicava com outro, ‘quarto-de-vestir’, esse com janela onde ficavam cómoda, guarda-fatos, lavatório, enfim a mobília de um quarto. Era esse o costume.
Uma das memórias que guardo era poder ver o amassar do pão. Era ainda de noite quando uma prima já crescida deitava num grande alguidar de barro farinha, água e sal e começava a amassar. Recordo os murros que ia dando naquela massa que tomava consistência perante os meus olhos arregalados. Juntava-lhe uma outra massa que era o fermento, e depois tapava com um pano deixando levedar. E como aquilo crescia!... Quando, tempo depois se destapava, o alguidar estava cheio. Ela moldava então uns pães que colocava numa pá de madeira pondo um a um no forno – um buraco misterioso aos meus olhos. O cheirinho bom, o sabor ainda melhor, é das recordações maravilhosas que guardo desses tempos.
E os passeios com os primos, quer a pé, quer de burro. Pobre burro que pacientemente aceitava as tropelias que lhe fazíamos! Íamos até às vinhas, onde comíamos uvas cheias de pó mas que sabiam tão bem!... Nas propriedades da minha tia-avó havia vinhas e fazia-se vinho. Também me lembro muito bem, (decerto noutro mês, mas hoje tudo se confunde…) de uns homens a pisarem as uvas nuns lagares, e o cheiro forte que por ali havia.
É curioso, Clara, como a infância estava cheia de cheiros… Então na aldeia os cheiros eram intensos: da fruta, do estrume, do mosto, do pão, da madeira velha, dos animais, - a capoeira, a coelheira, a cavalariça - e o cheiro a terra, ou até o cheiro de humidade que subia do poço de onde se tirava a água.
E os sons. Ouvia muito mais sons do que em Lisboa. Não sons mecânicos, porque ainda não se tinham ‘inventado’ os electrodomésticos, nem havia por lá automóveis, mas toda a bicharada ‘falava’. Ouvia grilos e cigarras, ouvia ovelhas e cavalos, ouvia passarinhos, ouvia as carroças na estrada, ouvia a corrente da roldana a puxar o balde com água do poço.
E, se não se usava rádio, cantava-se muito. Parecia-me que toda a gente cantava bem! As ‘modas’ que se cantavam em coro, a várias vozes, espontaneamente, eram uma constante ao final da tarde.
Como era lindo este Alentejo que eu recordo! »
Clara