domingo, agosto 05, 2007

Um Caderno de Capa Castanha IX

Férias na aldeia ( primeira parte “a viagem”)
«Quando da última vez te contei, Clara, que naqueles tempos havia o costume de antes das “férias a sério” irmos a uma praia perto de Lisboa, acrescentei lembrar-me de que as férias eram muito compridas.
Era verdade. Para além de aos olhos de uma criança o tempo ter outra dimensão, era também certo que as minhas férias eram enormes, estendiam-se ao longo de cerca de 3 meses, dividindo-se em 3 partes distintas.
Em Julho (pelo menos creio ser Julho…) era enviada para a aldeia onde o meu pai tinha nascido e onde parte da família ainda morava. Lá no Baixo Alentejo. Os pais ainda estavam a trabalhar e eu partia acompanhada por uma tia-avó.
Uma aventura maravilhosa aos meus olhos. A viagem era enorme! Depois de ir até ao Terreiro do Paço, apanhava-se o barco para a outra banda de onde partia o comboio que seguiria para o Alentejo. Não existia ponte nenhuma, nem se sonhava que fosse alguma vez possível construir uma coisa tão comprida, portanto esta viagem implicava 3 transportes: primeiro o barco, de onde se arrastavam as malas para o comboio e, chegadas muitas horas depois à estação alentejana, tínhamos lá à espera um veículo puxado por duas mulas, que nos levava até à aldeia ainda um pouco distante. Chamavam a essa carrocinha de duas rodas com um toldo abaulado, o «churrião». Pelo menos é o nome que recordo.
E, como te digo, a viagem era toda uma aventura. Já o barco que nos levava ao outro lado do rio, era uma festa para mim, eu respirava muito fundo, enchendo os pulmões com aquele ar cheirando a maresia e sentia-me muito excitada porque raras vezes andava de barco e tudo aquilo era novidade. A agitação, as pessoas carregadas de malas e cestos, e o medo de, por um azar, o comboio se por em movimento sem esperar por nós, coisa impossível mas que eu receava sempre…
Quanto à parte da viagem de comboio a recordação era pior. As carruagens eram desconfortáveis apesar de irmos em segunda classe. Nessa época havia 3 classes nos comboios: na primeira iam as pessoas de posses, importantes, os bancos eram estofados e tinham naperons para encostar a cabeça; nós íamos na segunda, creio que os bancos ainda eram estofados mas de um material pior, e nada de naperons; «o povo» viajava na terceira, a mais barata de todas, com bancos de pau, tudo bastante sujo e onde se tropeçava em cestos de verga cheios até mais não e atados com cordas. Aliás quando falo em sujidade, ela era geral e inevitável porque o comboio era movido a carvão, e quando se abriam as janelas esse pó de carvão espalhava-se por todo o lado. E viajar de janela fechada seria impossível porque com o calor do verão ficaríamos assados vivos; mesmo assim as senhoras agitavam leques e nas estações onde parávamos haviam vendedoras a oferecer jarrinhos de barro com água fresca. Para culminar era uma viagem longa, longa, que a série das estações desenrolava-se enorme e aquele comboio parava em todas, mesmo todas, e até em apeadeiros. Apesar de esborrachar o nariz contra a janela para apreciar tudo, o certo é que a paisagem era parecida e tantas horas de viagem cansavam e aborreciam.
Mas finalmente, começava-se a pegar na bagagem, aproximávamo-nos da Estação. O coração batia mais forte de excitação. Já está! Estamos quase!
E, como contei, na estação estava já à nossa espera um empregado da lavoura da casa da outra minha tia-avó, que nos carregava com as malas e instalava nesse transporte que me encantava. Imaginava que era uma carruagem, como as das princesas, não exactamente a da Gata Borralheira mas aparentada..! Tão depressa me sentava atrás, como uma senhora cheia de juízo, como queria passar para o lado do cocheiro a apreciar o modo como ele segurava as rédeas e rir-me com as mulas de rabo a dar a dar para afastarem as moscas. E arregalava os meus olhos de menina da cidade quando elas levantavam a cauda e, sempre a andar, satisfaziam as suas necessidades ‘sólidas’. Oh que risota, ver aquele estrume que ficava no pó da estrada, e rapidamente se misturava com ele. Onde é que eu via aquilo em Lisboa?!
Chegávamos ao fim da tarde, que isto era viagem para um dia. Ia de colo em colo, comentavam como estava crescida, que bonita, que faladora e mais isto e mais aquilo, estava na berlinda e era de novo a tal princesa. Os primos atropelavam-se para me ver, a prima de Lisboa, todos a troçarem do meu sotaque enquanto eu também estranhava aquele alentejano cerrado.
Tínhamos chegado!
E as férias já ali estavam...
Clara

10 comentários:

Anónimo disse...

Agora pelos que se vê, entramos noutra etapa - já são posts «novos» não apenas os do antigo Pópulo 'revisitados'.
Portanto tive de ler com cuidado porque era a primeira vez. Escuso de me repetir, afirmando de novo que gosto imenso destas entrevistas e deste reviver de uma época que ainda foi um pouco a minha - vivi mais tarde, mas apanhei muito do que aqui se conta.
Para a malta jovem, tem piada o pensar que não havia nenhuma ponte sobre o Tejo! Havia, mas para os lados de Santarém...
E essas viagens de dia inteiro para se fazer um caminho que de autoestrada leva uma manhã!
Mas era mesmo uma aventura, como aqui a Clara nos conta. Só a viagem já dava que contar.

Anónimo disse...

Ainda aqui volto para dizer a quem venha depois de mim que há links ocultos. Ao princípio não tinha reparado, mas se clicarmos em churrião ou em comboio, vemos os ditos!!! Que boa ideia.
E a foto a «fechar» se não é da época parece. Que gira.

josé palmeiro disse...

Este comentário, fica para mais logo.
Agora vou comprar umas coisas que faltam e como não se pode responder assim, sem mais nem menos a um escrito destes, deixo para logo.

Anónimo disse...

Estou como a Joaninha, ainda bem que «continuaste» estes escritos.
Faz cá umas saudades!

josé palmeiro disse...

Vou tentar começar a pôr em ordem as ideias, para poder aqui deixar um contributo, que é o meu, e que sinto ser, de certo modo, o inverso do relatado.
As férias, eram iguais, enormes, os tais três meses, mas que passavam num instante.
O meu pai trabalhava, num armazém de merceeria, propriedade de um padrinho, onde foi criado desde a idade dos treze anos, depois de ter estado em Lisboa. a trabalhar, no mesmo ramo desde os dez anos. Tudo fazia para o filho usufruir, daquilo que ele nunca tinha tido a oportunidade de vivenciar. A princípio, íamos para a FNAT (Federação Nacional da Alegria no Trabalho), da Costa de Caparica. Ia-se de camioneta, para Cacilhas e daí, também de camioneta para a FNAT. Depois de instalados, lembro-me dos quartos, pequenos, mas suficientes para alojar uma família como a nossa, de três elementos.
Durante quinze dias, era levantar cedinho e caminhar, pelas infindáveis dunas, até chegar à praia. Aí tinhamos uma barraca, onde se mudava de roupa e se preparava o banho, dado pelo TARZAN, um banheiro, excepcional, que comandava toda aquela azáfama dos banhos das crianças e ainda tinha tempo para socorrer os mais incautos. Regressados à colónia de férias, outra vez por esse infindável caminho das dunas, era chegar e preparar para o almoço, no refeitório, onde se encontravam todos os beneficiários. Era a festa colectiva.
Depois do almoço recolhíamos aos quartos, onde dormíamos a SESTA. Ao fim da tarde, ou se regressava à praia ou se optava por uma ida para o pinhal. Depois do jantar, havia um convívio, onde se podia dançar, os mais velhos e nós, as crianças brincar, ou passear com os pais e os amigos.
Hoje, fico-me por aqui, noutra ocasião contarei as outras experiências, porque passei, em tempo de férias.

Anónimo disse...

Este mês, de «férias» do Pópulo e pelo que li, d Joaninha também, acho que vou pegar no 'testemunho' da Joaninha tipo corrida de estafetas, e passar a comentar em vez dela
:)
É que de uma forma geral, como eu passo por aqui SEMPRE depois do comentário dela, acontece que aquilo que eu tinha pensado dizer, já ela o disse...E daí, ficar calada!
Este post - e já agora o 'acrescento' do Zé Palmeiro - estão excelentes. É todo uma época que revivemos. Estas viagens enoooormes, quase o dia todo, levávamos farnel para o caminho e chegava-se completamente estafados mas muito felizes. Também tive uma infância assim... E que bem me sabe relembrar.
É evidente que é muito mais prático e cómodo o método de viagem de hoje, mas este de que falas tinha um encanto especial. E o facto de as coisas serem mais difíceis dava-lhes mais valor.

Anónimo disse...

Férias, mas férias ainda antes do significado escolar eram aquelas filas de baús e cestas que iam nas vésperas para o "monte".E toalhas,muitas toalhas brancas que cobriam coisas,móveis estofos para evitar o pó na volta.Férias eram os tectos de madeira grossa que se olhavam nas sestas sem sono e o medo das osgas que surgiam de repente no meio das traves.Férias era o lavatório de ferro e o jarro da água no meio do quarto,que deixava uma mancha na madeira do chão branco de crestado e onde se inventavam formas -a cabeça da avó...e os bibes atirados de repente para cima das pernas -Vá são horas do lanche.
Os comboios.
Para vir a Lisboa,com o avô.Cedo,sono,apito,solavanco,partida.As janelas estreitas,abriam até abaixo,seguravam-se com umas faixas largas de coiro,com buracos como os cintos a uma peça de metal amarelo logo acima do cinzeiro.Duas paragens essenciais:Casa Branca-rapazolas ou mulheres a vender sanduiches de linguiça para o caminho ou queijadas e bilhinhas de água(deixavam-se depois no comboio).Vendas Novas-era preciso fazer transbordo e era o fascínio das carruagens a ir ligar de novo à máquina e a encostar aquelas enormes bolachas de metal,está quasi,e pronto o encontrão final,estremeção e tudo a postos para partir outra vez.Barreiro,o vapor,avô, o vapor?Colo para passar o passadiço entre o cais e o barco.Os bigodes do avô davam tanta segurança as pessoas até se afastavam-faça favor,faça favor...AB

Anónimo disse...

Que «comentários»...
O da AB, excelente, mas o do Palmeiro noutro ângulo, mereciam que fizesses como das outras vezes e os 'puxasses' para post!

Anónimo disse...

Vem uma pessoa de férias, abre o pc e «apanha» com um post destes!!! E «comentários» destes!!!
Para mim, doutra geração completamente, é como ir ao cinema (desculpem comparação) como ver História ao vivo.

cereja disse...

Joaninha - tens razão numa coisa, quando faço links nestes textos a azul, devo passar a fazê-los noutra cor, ou não se notam!
Gui - mas passa-te pela cabeça que o não vá fazer...? É que é já!