Não sei como chamar à história que se vou contar. Havia dantes, nas Selecções do Riderg’s Digest, umas crónicas chamadas «O meu tipo inesquecível» e era isso que gostaria de chamar a este post, mas não faço ideia se existe ‘marca registada’ e assim não me atrevo.
Eu tenho a casa na aldeia onde estou de momento a passar férias há muitos, muitos anos. A aldeia é muito pequenina e não tem muito por onde crescer; aliás como fica pertíssimo de uma outra maior, embora também pequena, algumas das historietas que tenho contado passam-se nessa outra ao lado, a «grande», onde se situa este dito «ciber-qualquer-coisa» que me permite manter a escrita mais ou menos em dia, e há farmácia, talho, uma feira ao Domingo e até um multibanco. Progresso.
Mas lá o comércio resume-se a uma loja e um café.
Quando pela primeira vez, há muitos anos assentei aqui arraiais, essa loja, no minúsculo largo e em frente ao chafariz, não tinha nome nem precisava. Era a loja da D. Júlia. E ia-se «à D. Júlia» sem precisar de dizer mais nada, «vou ali à D. Júlia…» e estava explicado.
Foi a primeira pessoa que cá conhecemos, porque ao entrar pela primeira vez na terra e procurando a morada desta casa, instintivamente entramos na primeira porta aberta procurando (e recebendo) a localização que era preciso. E conheci a D. Júlia, a guia turística da aldeia, que sabia tudo!.
Pequenina, de preto dos pés à cabeça, cabelo branquíssimo penteado para trás e fazendo um rolo na nuca, feições ainda bonitas apesar da idade que não se conseguia adivinhar, olhos escuros penetrantes, um sorriso leve e expressão interessada. Era uma fonte inesgotável de conhecimentos, aquela senhora. De tudo o que se passava por aqui não lhe escapava nada, tanto mais que toda a gente se juntava na sua loja para conversar e trocar informações.
A loja em si era um espectáculo! Isto era antes dos hiper, super, esses mercados todos, mas ali estava a sementinha de uma coisa dessas, porque ela tinha de facto tudo em porções reduzidas. Era simultaneamente mercearia, leitaria, padaria, lugar de legumes, drogaria, retrosaria, e tinha tachos, panelas, copos, tudo o que podia fazer falta de repente.
E tinha o telefone.
Se calhar parte dos seus conhecimentos vinham das conversas que ouvia ao telefone. Não havia cá cabines, nem nada disso. Talvez 4 ou 5 telefones particulares, e o da loja dela. Também era particular, mas tinha um contador de minutos e ela deixava que quem precisava o utilizasse. Não era assim lá uma grande samaritana, porque tenho a certeza de que depois ‘arredondava’ os minutos, mas quem é que se ralava muito com isso?… Durante muitos anos usámos o telefone da D. Júlia não apenas quando precisávamos de falar, mas também dávamos o seu número a quem nos queria contactar. Ela recebia a chamada e mandava alguém correr à nossa casa, gritando «Telefoooone!!!!» Prático.
A sua loja nunca estava vazia, e também não dava para pressas. Quando se entrava havia quase sempre uma ou duas pessoas encostadas ao balcão, à conversa, esquecidas do que as tinha levado lá. A desabafar dos genros, da cunhada, das mil e uma intrigas que se formam nas terras pequenas. Com a nossa entrada a conversa por vezes interrompia-se, e a D. Júlia lá ia buscar os ovos que precisávamos ou a barra de sabão, ou o pacote de manteiga. Mas muitas vezes enquanto eu reflectia se me faltava alguma coisa, ela voltava-se para a outra cliente e continuava a conversa « Não me diga! Mas então…» e dessa forma acabei por me ver sabedora de intrigas domésticas iguaizinhas às que se encontram em qualquer parte do mundo. Só que diziam respeito aos meus vizinhos do fundo da rua, ou da porta ao lado…
Mas não é que a D. Júlia fosse cuscuvilheira. Nada disso. Nunca a ouvir espalhar nenhuma notícia, ela podia ‘responder’ a perguntas, esclarecer alguma dúvida, mas espontaneamente não vinha contar que o Zé do Ó tinha deixado de falar à irmã por causa das partilhas do tio, ou que a cunhada da Mariazinha andava a beber demais e aquilo ia acabar mal, ou que o Jaquim da quinta tinha vendido uma parte da horta e feito um grande negócio, que aquela parte não prestava para nada e o Tó tinha enfiado um grande barrete. Isso ia eu ouvindo, enquanto ela pesava as batatas, ou fazia a conta - a lápis, numa ponta de papel de embrulho. Se a conta era mais complicada, fazia ao lado a prova dos noves. Máquina de calcular…?!
Como eu disse, a loja era pequena mas estava sempre cheia que nem um ovo. Atrás do balcão uns recipientes de madeira com tampa, onde guardava cereais, rações para animais, ou legumes secos, e armários até ao tecto com latas de conservas, chás, cafés, e pacotes de tudo o que se podia imaginar. Logo à esquerda da porta, estavam os caixotes de madeira com os legumes e fruta da época. Um pouco de tudo. Lá para o fundo da loja, meio às escuras, estavam o que se podia chamar os ‘perecíveis’ – ovos, manteiga, margarina, queijos, compotas, e também o azeite, o óleo, produtos que para ela estariam associados. Num corredor ao lado, era a ‘drogaria’ – detergentes, lixívia, solarine, sabão, esfregões…
E, o mais característico era o tecto. Pendiam que nem cachos ao longo de todo o espaço da loja tudo o que podia ser pendurado! Para além das réstias de cebolas e alhos, eram vassouras pequenas e as suas pás, esponjas de banho, mata-moscas, sacos de rede com brinquedos para as crianças, alguidares de plástico, dezenas de produtos que a D. Júlia tirava para baixo com um pau e um camarão na ponta, geringonça muito prática para ela que era baixinha.
(bem, mas o resto fica para amanhã, que a conversa está a ficar muito comprida…)