Sem titulo Em memória (II)
Bem, se me demorei algum tempo a descrever a loja em vez de falar na D. Júlia, é que não se imagina bem uma sem a outra. Que me lembre nunca vi a D. Júlia fora da loja. Como vivia por cima dela quando bem à noitinha fechava as portas, bastava-lhe subir a escada e estava em casa. Sair para quê? os fornecedores traziam-lhe tudo o que precisava. Quanto à roupa, devia gastá-la muito pouco e como vestia o tradicional luto de viúva, uma ou outra saia ou blusa, a costureira da terra devia com facilidade satisfaze-la. E, de resto, como viúva que se preza não sai de casa, aquela loja era um mundo completo.
Em conversa percebi que era viúva já há bastante tempo, tinha criado a filha e creio que um filho (mas que nunca vi porque creio que orientou a sua vida longe ) com a sua energia e independência. Falo da filha, porque a D. Júlia com muito carisma, era uma matriarca.
Já disse que se via pelos seus traços que devia ter sido bastante bonita, mas a filha infelizmente, deve ter herdado as feições de outro lado. Feiínha e apagada, tinha casado com um rapaz, esse bastante bem apessoado, ex-desportista, que não era destes lados mas passou pela terra engraçou com a Julinha e casaram. Quatro filhos, 3 raparigas – nenhuma parecida com a avó – e um rapaz que saiu ao pai. Mas quando lhe chamo matriarca, é que de facto o tronco daquela família era a D. Júlia e a loja que ela «vestia» todos os dias.
A filha e o genro tiveram vários negócios mas nenhum com grande sucesso. Era deles o café, quando conheci esta aldeia. Pelos vistos pensariam que a ‘costela comércio’ era de família, mas não. Aquilo não resultou. Sei que entretanto tiveram várias actividades, sem nenhum sucesso por aí além, apesar de agora me terem dito que finalmente acertaram.
Mas a D. Júlia era quase o ex-libris desta aldeia. Toda a gente a conhecia, toda a gente a respeitava. A sua loja era antiquada, de vez em quando insistiam que comprasse uma balança mais moderna (e chegou a estar lá uma mas que nunca vi usar) usasse uma máquina de calcular, um balcão frigorífico transparente em vez da sua velha arca, mas ela encolhia os ombros e ficava na dela. Era ela quem mandava, ou não?!
Da sua vida privada, fiquei a saber pouco. Como já o disse, que era viuva há bastante tempo, e que existia um outro filho, mas era da família próxima que falava um pouco mais. Quando o meu filho nasceu ela achava-lhe muita graça e chamava-o para dentro do balcão de onde vinha com rebuçados ou uma tablete de chocolate. E no Natal trocávamos prendas, ele levava-lhe uma bugiganga como lembrança porque eu já sabia que ela lhe ia dar um doce ou brinquedo. Ternuras.
Aliás, era no Dia de Natal, e talvez no de Ano Novo, que a porta estava fechada. De resto, todo o ano, sábados, domingos, feriados, nunca vi a loja fechada. E, como ela vivia por cima, aconteceu mais de uma vez, já depois da porta fechada, faltar-me alguma coisa com urgência e ainda lhe bater ao ferrolho e ela lá descia a escada para me socorrer. Durante anos, muitos anos, vi-a sempre igual, a cara enrugada mas bonita, o cabelo todo branco com um rolo na nuca, vestida de preto de cima abaixo. O tempo parecia ter parado.
Há uns anos, por motivos diversos, estive bastante tempo sem cá vir. Quando cheguei vi a porta fechada, e perguntei à neta mais nova «A tua avó? Aconteceu alguma coisa?» «Morreu!». Fiquei sem respiração!… Sabia que decerto tinha já bastante idade, mas…
A loja mudou de mãos.
Uma vez.
Mais vezes.
Este ano está toda moderna, e tem um letreiro «Loja da Aldeia». Até é simpático, tinha esperado uma coisa mais pretensiosa, mas sinto um aperto no coração. Para mim deveria chamar-se qualquer coisa como «Antiga loja da D. Júlia».
Em conversa percebi que era viúva já há bastante tempo, tinha criado a filha e creio que um filho (mas que nunca vi porque creio que orientou a sua vida longe ) com a sua energia e independência. Falo da filha, porque a D. Júlia com muito carisma, era uma matriarca.
Já disse que se via pelos seus traços que devia ter sido bastante bonita, mas a filha infelizmente, deve ter herdado as feições de outro lado. Feiínha e apagada, tinha casado com um rapaz, esse bastante bem apessoado, ex-desportista, que não era destes lados mas passou pela terra engraçou com a Julinha e casaram. Quatro filhos, 3 raparigas – nenhuma parecida com a avó – e um rapaz que saiu ao pai. Mas quando lhe chamo matriarca, é que de facto o tronco daquela família era a D. Júlia e a loja que ela «vestia» todos os dias.
A filha e o genro tiveram vários negócios mas nenhum com grande sucesso. Era deles o café, quando conheci esta aldeia. Pelos vistos pensariam que a ‘costela comércio’ era de família, mas não. Aquilo não resultou. Sei que entretanto tiveram várias actividades, sem nenhum sucesso por aí além, apesar de agora me terem dito que finalmente acertaram.
Mas a D. Júlia era quase o ex-libris desta aldeia. Toda a gente a conhecia, toda a gente a respeitava. A sua loja era antiquada, de vez em quando insistiam que comprasse uma balança mais moderna (e chegou a estar lá uma mas que nunca vi usar) usasse uma máquina de calcular, um balcão frigorífico transparente em vez da sua velha arca, mas ela encolhia os ombros e ficava na dela. Era ela quem mandava, ou não?!
Da sua vida privada, fiquei a saber pouco. Como já o disse, que era viuva há bastante tempo, e que existia um outro filho, mas era da família próxima que falava um pouco mais. Quando o meu filho nasceu ela achava-lhe muita graça e chamava-o para dentro do balcão de onde vinha com rebuçados ou uma tablete de chocolate. E no Natal trocávamos prendas, ele levava-lhe uma bugiganga como lembrança porque eu já sabia que ela lhe ia dar um doce ou brinquedo. Ternuras.
Aliás, era no Dia de Natal, e talvez no de Ano Novo, que a porta estava fechada. De resto, todo o ano, sábados, domingos, feriados, nunca vi a loja fechada. E, como ela vivia por cima, aconteceu mais de uma vez, já depois da porta fechada, faltar-me alguma coisa com urgência e ainda lhe bater ao ferrolho e ela lá descia a escada para me socorrer. Durante anos, muitos anos, vi-a sempre igual, a cara enrugada mas bonita, o cabelo todo branco com um rolo na nuca, vestida de preto de cima abaixo. O tempo parecia ter parado.
Há uns anos, por motivos diversos, estive bastante tempo sem cá vir. Quando cheguei vi a porta fechada, e perguntei à neta mais nova «A tua avó? Aconteceu alguma coisa?» «Morreu!». Fiquei sem respiração!… Sabia que decerto tinha já bastante idade, mas…
A loja mudou de mãos.
Uma vez.
Mais vezes.
Este ano está toda moderna, e tem um letreiro «Loja da Aldeia». Até é simpático, tinha esperado uma coisa mais pretensiosa, mas sinto um aperto no coração. Para mim deveria chamar-se qualquer coisa como «Antiga loja da D. Júlia».
12 comentários:
Excelente!
Muito bem Emiele!
Obrigada, King.
Como vês isto tinha de ser dividido ou ficava um post demasiado grande. Esta senhora deixou mesmo um vasio, sabes?...
Um fecho digno, de uma história, ainda cheia de interrogações.
Mas, mudar o nome à loja? Mau recomeço...
Mais uma vez, excelente!
Disse ali, na «primeira parte» o que achei desta 'história' da vida. Comovente, de facto.
E percebe-se que ficasses com saudades.
Zé Palmeiro - a verdade é que a loja não tinha nome, nem precisava. Mas antes destes donos já teve um ou dois, só que estranhamente aquilo não medra... Muita gente prefere (até eu) vir à aldeia do lado, que tem outras coisas.
Ali, a força que mantinha a loja era a D. Júlia, como uma árvore que «segurava» a loja.
Tal qual, como dizes, Emiéle.
Eu tive esse exemplo, em casa, com o meu pai, situações muito próximas, em que uma coisa, não funciona sem a outra.
Bom,amiga, se começas a fazer o itenerário da saudade estás feita...AB
Este é que se podia chamar «sniff...».
Ficamos com um nozinho da garganta.
E quem não conhece situações destas?....
Fica a lembrança, e enquanto durar, dura também a D. Júlia.
Bons posts, Emiéle!
Ou boas histórias?...
É que as melhores histórias, são as da vida.
Assim, a saltar de verdade.
Huuummm....
Creio bem que sei a quem te referes.
Aliás a AB quando disse que ao chegar lá se perguntava onde era o quê, deu uma pista.
Também fiz isso!
Já morreu?...
Como noutro sítio disse o FJ, a gente julgava que isso nunca ia acontecer. Parecia não ter Tempo.
Mantenho o que disse ontem, e agradeço o apoio de rs.
Pois foi, RS.
Aquela senhora «sem tempo» 'desapareceu-nos' e com ela vai parte do encanto daquela terra.
Para ser franca ainda não chegueia entrar na loja com nome e letyreiro cá fóra... Faz-me impressão, mas tenho de vencer esta coisa. Afinal quem a abriu limitou-se a fazer o seu papel, não tem culpa da vida ser assim e as pessoas, mesmo as que não o parecem, serem mortais...
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