domingo, agosto 12, 2007

Um Caderno de Capa Castanha X - Férias I

«Comecei por te contar primeiro, Clarinha, como era a viagem para a terra do meu pai.
Uma vez lá chegada, depois daquela longa viagem, vinha a realização da justa expectativa. Um contaste completo com a minha vida diária em Lisboa.
Por um lado uma liberdade enorme, a aldeia, pequena, parecia-me constituída apenas por familiares. E não me enganava assim muito, porque para além da família ser grande – sobretudo se contássemos com a família muito alargada, os primos dos primos dos primos – éramos também quase todos parentes pelos laços dos baptismos, todos eram padrinhos e madrinhas, e assim compadres uns dos outros. Eu sabia que era conhecida por toda a gente e, com essa confiança, podia andar à vontade por todo o lado que nem me perdia nem me acontecia mal nenhum.
Mas, por outro lado, notava a falta de alguns confortos, rotineiros em Lisboa e desconhecidos lá. Como não havia água canalizada nem electricidade isso implicava toda uma rotina diferente, e a higiene tornada mais complicada sem a casa-de-banho – lavava-me ‘por partes’ e o banho, numa grande celha, apenas duas vezes por semana. Deitava-me ainda mais cedo, porque os serões à luz dos candeeiros de petróleo eram curtos, dormindo num quarto, vulgar lá mas estranho para mim: a cama e mesa-de-cabeceira ficavam numa ‘alcova’, um quarto interior que comunicava com outro, ‘quarto-de-vestir’, esse com janela onde ficavam cómoda, guarda-fatos, lavatório, enfim a mobília de um quarto. Era esse o costume.
Uma das memórias que guardo era poder ver o amassar do pão. Era ainda de noite quando uma prima já crescida deitava num grande alguidar de barro farinha, água e sal e começava a amassar. Recordo os murros que ia dando naquela massa que tomava consistência perante os meus olhos arregalados. Juntava-lhe uma outra massa que era o fermento, e depois tapava com um pano deixando levedar. E como aquilo crescia!... Quando, tempo depois se destapava, o alguidar estava cheio. Ela moldava então uns pães que colocava numa pá de madeira pondo um a um no forno – um buraco misterioso aos meus olhos. O cheirinho bom, o sabor ainda melhor, é das recordações maravilhosas que guardo desses tempos.
E os passeios com os primos, quer a pé, quer de burro. Pobre burro que pacientemente aceitava as tropelias que lhe fazíamos! Íamos até às vinhas, onde comíamos uvas cheias de pó mas que sabiam tão bem!... Nas propriedades da minha tia-avó havia vinhas e fazia-se vinho. Também me lembro muito bem, (decerto noutro mês, mas hoje tudo se confunde…) de uns homens a pisarem as uvas nuns lagares, e o cheiro forte que por ali havia.
É curioso, Clara, como a infância estava cheia de cheiros… Então na aldeia os cheiros eram intensos: da fruta, do estrume, do mosto, do pão, da madeira velha, dos animais, - a capoeira, a coelheira, a cavalariça - e o cheiro a terra, ou até o cheiro de humidade que subia do poço de onde se tirava a água.
E os sons. Ouvia muito mais sons do que em Lisboa. Não sons mecânicos, porque ainda não se tinham ‘inventado’ os electrodomésticos, nem havia por lá automóveis, mas toda a bicharada ‘falava’. Ouvia grilos e cigarras, ouvia ovelhas e cavalos, ouvia passarinhos, ouvia as carroças na estrada, ouvia a corrente da roldana a puxar o balde com água do poço.
E, se não se usava rádio, cantava-se muito. Parecia-me que toda a gente cantava bem! As ‘modas’ que se cantavam em coro, a várias vozes, espontaneamente, eram uma constante ao final da tarde.


Como era lindo este Alentejo que eu recordo! »

Clara

13 comentários:

josé palmeiro disse...

Fiquei de "lagriminha no olho"!
Esta coisa de falar ao sentimento, tem desta coisas, e agora não consigo articular ideias, estou sensibilizado.
Volto mais tarde.
Um bom Domingo.

Anónimo disse...

Hoje venho muito mais tarde, mas não quero deixar de «marcar o ponto» sobretudo num post como este!
Gaita, que faz mesmo saudades...
Olha, estou como o Palmeiro, acho que vou 'deixar assentar' e amanhã digo mais alguma coisa.

Anónimo disse...

Eu não era Alentejo, e apesar de tudo foi uma época um pouco mais recente, mas há muotas destas recordações que são minhas.
Ai os cheiros...!
Ah, Emiéle ou Clara ou seja quem o escreve, não há como os cheiros para relembrar o passado.

Anónimo disse...

Os comentários anteriores entraram ao mesmo tempo, e eu venho já a seguir. Passei por aqui de manhã e ainda não havia posts.
Volto agora e vejo a excelente continuação deste «Caderno de Capa Castanha»
Bravo!
Como alguém já disse é mesmo um 'serviço público'!

Anónimo disse...

Como já disse e ficou combinado amanhã falamos.AB

Anónimo disse...

Realmente que saudades, do rústico, dos cheiros, dos sons do campo, de estarmos juntos sem precisar de televisão, DVD e tudo o mais em "D". Tenho recordações semelhantes mas do Algarve das campinas ou serras...tb com carroças, burros ou mulas...poços ou noras com alcatruzes, manobrados por burros ou um motor rudimentar/musical; milheirais ou laranjais, figueiras, alfarrobeiras ou amendoeiras em flor. A paisagem variava se se estava nas campinas ou na serra...ou perto do MAR, havia de tudo... Noutra ocasião logo contarei mais...por enquanto chega a agradável e viva descrição da Clara/Emiéle. Um resto de dia feliz para todos estes leitores/escritores nostálgicos...

Anónimo disse...

E depois o pão era embrulhado em panos e metido em arcas.Durava.Cheiros,cheiros ,o da barrela por exemplo,sabão cortado em falhas com " a faca do sabão"para o panelão de agua quente,mexida a mistura com um pau comprido, mergulhada a roupa e depois posta a corar sobre o terraço de pedra ...o calor e cheiro a branco...como quando se caiava...e tambem cheiro e côr branca dos panos que as mulheres punham na cabeça ao fazer a geleia e derreter a banha para os torresmos..." Saia de aqui que isto está quente,saia daqui".AB

Anónimo disse...

Volto hoje como ontem disse. Ainda cá não tens nenhum post novo, de modo que tenho tempo para o que me apetecia dizer.
Que razão tens, em evocar o que nem sempre se fala. Porque evocamos muito bem as imagens, mas como dizes, o que mais faz recordar são primeiro os cheiros e em seguida os sons...
Da minha infânci tamb~em guardo os cheiros. Basta passar por um local onde me cheira a sabão (como aqui lembrou a AB) mas sabão mesmo, sabão azul e branco, para vir uma revoada de recordações. E para além dos sons que aqui referes, também as cantigas têm muita época. O que se cantava quando eu era miúdo, deixo de se cantar é claro, mas basta ouvir um pouco para regressar ao passado...
Achei curioso o «quarto» dividido, a parte de dormir e a parte de vestir. Também me recordo disso em casa de família lá no interior. De qualquer modo, isso refere-se a casas de alguma qualidade como é evidente. As casas simples, de camponeses ou pescadores, eram de outro tipo como se calcula.
A minha família estava um pouco entre esses dois extremos.
São muito boas estas recordações!

cereja disse...

Tchi, tenho tantos comentários que é difícil responder a todos... (é que tenho aqui o relógio do cibercafé a fazer clic, clic, ou talvez tlim, tlim...)
AB - Tens razão quanto à barrela. Eu enquanto estava a deixar o post, pensava que nada disto é completo, nem pouco mais ou menos. O formato de um blog, não se compadece com histórias maiores, mas às vezes é pena.
King - Olha que o sentido do olfato é o mais primitivo e animal que nós temos. Por isso evoca memórias tão antigas. Mas é um sentido que se nãoé valorizado, não quer dizer que não seja importantíssimo!

cereja disse...

Ainda volto a deixar um abraçoi à Lia, que se tornou uma leitora tão fiel e simpática. Obrigada, Lia, pela presença e pelas palavras.

Anónimo disse...

Que post interessante. Vou coleccionar tudo o que entra na rubrica do Era uma vez.

Anónimo disse...

Só uma pergunta do amigo da onça: Este burro não é o que já tinha passado pelo Pópulo?..
Eheheheh!!
Tadinho do burro...
(não leves a mal, imagino que tens a foto aí em casa e portanto justifica-se a ilustração)

josé palmeiro disse...

Disse que voltava hoje e cá estou.
Mas, mais morto que vivo e sem cabeça para escrever e partilhar as minhas vivências e memórias. As minhas desculpas, mas voltarei, logo que, tenha um momento de descanço, pois as obras acabaram mas o arrumar a casa, é muito mais arrasante, são as estéticas, o fica bem aqui e não ali, etc. Necessito mesmo descançar!