«Acho interessante, Clara, comparar as minhas idas à praia em pequenita com o que se passa na actualidade.
As minhas férias eram bem grandes, tal como as das crianças de hoje, e a mim pareciam-me enormes. Dividiam-se por fases: Por uns tempos, cerca de um mês, ia para a aldeia, perdida lá no sul, casa de família do meu pai. Depois, que me lembre, alugava-se uma casa na Nazaré ou em S. Martinho, e íamos todos apanhar o ar do mar (mais tarde posso falar disto com mais pormenor), e mais tarde ia para uma outra casa de família que variava.
Mas do que recordo com muitas saudades eram as idas à praia só com a minha mãe, ainda no início do Verão. Uma festa, para mim! Acordava noite escura. Que excitação! Depois, com o arranjar-me, comer, sair de casa, recordo que já havia luz quando se saía para a rua. Nós não tínhamos carro, aliás como nenhum dos amigos dos meus pais. Era ainda um luxo muito grande nessa época. Portanto a ida à praia era, naturalmente, de transportes públicos. Dava a mão à mãe e lá íamos, eu aos saltinhos e muitas vezes largando-lhe a mão para me sentir independente, até à paragem do eléctrico. Como era tão cedo, apanhávamos um eléctrico que me lembro chamar-se “carro operário” porque quem o usava eram sobretudo trabalhadores dessa classe. Os bilhetes eram mais baratos e comprava-se logo um de ida e volta.
Aí já era uma festa, para mim! Era Verão, mas como era tão cedo estava ainda fresquinho, e se possível ia à janela a apreciar o caminho, entusiasmadíssima. Chegávamos ao Cais do Sodré, comprávamos outros bilhetes e esperávamos um comboio. Claro que não havia tantos comboios como hoje, e eram muito mais sujos porque eram movidos a carvão. De vez em quando apitavam forte e soltavam uma fumarada negra… Mas era uma aventura para mim e sentia-me radiante. De comboio lá se ia, até Carcavelos ou Parede, calculo que as praias de que a minha mãe mais gostava porque era sempre para aí que se ia. E as distâncias parecem-me tão diferentes… Era capaz de jurar que em Carcavelos a praia era longe da estação, mas não deve ser porque hoje não o é. A memória prega-nos partidas, ou são os olhos de criança que vêm as coisas de outra forma. Bem, o certo é que se chegava à praia bem cedinho, ainda havia muito pouca gente e alugávamos logo um toldo. Isso fazia parte da festa, o luxo daquele telhadinho de lona, só para nós! Não se usava guarda-sóis individuais, e os toldos não deviam ser caros, assim como as barracas, que tinham a vantagem de se poder mudar lá de roupa. Mas a minha mãe mantinha-se vestida e eu, como criança, mudava mesmo ali de roupa. Os fatos de banho eram tão pudicos! Os dos homens tinham um peitilho para tapar a parte do peito, e os das senhoras uma saiazinha que também tapava as curvas mais indiscretas. Já começava então a fazer calor. Ia com o meu balde apanhar água ao mar e vinha fazer bolinhos de areia, ou então passeávamos ao longo da praia a apanhar conchinhas. Cheirava tão bem!!! Lembro-me de um banheiro, a quem dava a mão para dar uns mergulhos, porque a minha mãe, mesmo arregaçando o vestido não podia entrar no mar. E aliás os banheiros eram mesmo … para dar banho! Passavam umas vendedoras de bata branca, a apregoar bolos, mais ou menos como hoje, mas nessa época havia muitas e era a única forma de se comer alguma coisa na praia – não me lembro de haver bares ou cafés. Aquela bola-de-berlim a meio da manhã, era uma delícia e como não havia embalagem para líquidos, para matar a sede a minha mãe levava fruta - um cacho de uvas, uma pêra. E era tudo. Porque cerca do meio-dia, tanto quanto me lembro, regressava a casa. No caminho de retorno eu vinha já mais murcha e um bocadito cansada. O ar do mar, as corridas pela borda da água, as construções na areia, e o apetite para o almoço, já me faziam rabujar e sentir que a volta era mais comprida do que a ida… Mas trazia no bolso as conchinhas que tinha apanhado para fazer um colar, e a recordação do cheiro a mar, da textura da areia, do azul do horizonte. Uma bela manhã, e…no dia seguinte havia outra igual» Clara