domingo, julho 22, 2007

Um Caderno de Capa Castanha VII

« - E agora que já me tenho uma ideia de como eram os ‘tempos livres’ das crianças nesse tempo, posso ter uma ideia de como eram os dos adultos?
- Com certeza! Lembra-te que fui eu que te pedi para de dividir esta conversa em ‘dois capítulos’, porque era muita informação para uma só vez. Ora bem, primeiro é bom não esquecer duas coisas: por um lado estamos a falar de uma época – anos quarenta - em que o mundo ainda estava em guerra e, mesmo quando esta acabou, não acabaram as restrições, por outro lado eu era muito pequena e o que te posso contar é o mundo dos adultos vistos pelos olhos de uma criança. Naturalmente que há muitos aspectos dessa época que todos sabemos nem preciso chamar a atenção, tudo o que se refere às tecnologias que ainda não existiam, como televisão, aparelhagens sonoras, por exemplo. Eu em criança deitava-me cedo e participava pouco nos serões da família. O costume era o meu pai depois do jantar ir até ao café. Os cafés eram pontos de convívio muito animados e estavam abertos até tarde. A minha mãe raramente o acompanhava, tinha tarefas domésticas a terminar apesar de viver connosco uma tia-avó que se encarregava de gerir a casa porque como já te contei, a minha mãe era professora e trabalhava muito, quer no liceu quer com explicações. Nesses serões, a minha tia dedicava-se à costura (coser meias! Ou a bordados) enquanto a minha mãe sobretudo lia. Também tínhamos uma telefonia, é certo, e por vezes ouvíamos aí música mas nem sempre estava ligada e, quanto a discos, só na década de 50, comigo já adolescente, se comprou finalmente um gira-discos. Eram serões muito calmos onde se conversava bastante. Apesar de já termos telefone, nem toda a gente o tinha e não era usado para grandes conversas, falava-se ao telefone apenas para dar um recado, fazer uma pergunta. Quando se queria conversar fazia-se uma visita. Os meus pais convidavam frequentemente os amigos para jantar lá em casa, ou íamos nós jantar em casa deles, mesmo durante os dias de semana. Claro que só te posso falar do que se passava na minha casa, Clara, mas creio que com os amigos dos meus pais era semelhante: as distracções estavam muito centradas em convívios entre amigos, e na leitura.
É certo que se 'saía'. Havia espectáculos, teatro, revista, cinema, concertos, até ballet e ópera, apesar de raramente. O cinema era já com som é, claro, mas os filmes quase todos a preto e branco. Lembro-me ainda de ouvir algumas discussões entre os meus pais e os amigos (como te contei fui criada num ambiente ‘intelectual’) sobre se a cor não roubava o aspecto artístico às películas… Reparava que o entretêm dos meus pais à noite, era a leitura. Liam imenso o que foi um bom modelo para mim»
Clara



12 comentários:

Anónimo disse...

O que hei-de dizer...?
Continuo a coleccionar os teus textos. É uma visão interessantíssima de um tempo que não conhecemos.

Anónimo disse...

Logo a seguir a ter lido o debaixo, parece-me que ando a ver um filme de época...
Bom trabalho, Emiéle.
(até eu tenho saudades dos cafés!)

josé palmeiro disse...

Era assim, Então o ir ao café, na província, só mesmo os homens A telefonia, talvez por isso eu seja um fã de ouvir rádio, não passo, sem a sua companhia. Os filmes. As companhias de "teatro desmontável", que vinham em digrassão à província, lembro-me da Companhia de Rafael de Oliveira, que representava, muito bom teatro.
QUanto ao MONUMENTAL,a que me refiro no comentário à canção do Chico, era mesmo aquele.
Um mar de recordações que, com estes "cadernos de arco-íris", me fazes reviver.
P.S. - Desculpa a mudança de côr, mas é como os estou a ver, neste momento.

Anónimo disse...

A primeira ideia é que nesse tempo se aproveitava melhor as coisas.
Eu, que nasci já bem depois, penso que hoje até se convive muito, mas talvez se converse menos. Pelo que dizes aqui, ia-se ao café para conversar. Nós também vamos, mas muitíssimo menos, e o convívio nas discotecas não dá mesmo para se conversar.
E sem dúvida que há muito menos visitas. Podemos ir jantar juntos a um restaurante, mas é muito raro ir-se jantar a casa uns dos outros, todos pensamos que vamos dar (ou ter...) trabalho.

cereja disse...

Zé Palmeiro, estes anos na província deviam ainda ser mais característicos. Imagino que se acentuava os traços descritos aqui, que apesar de serem anos 40, estava-se em Lisboa. O Monumental, São Jorge, Império... Ou desaparecidos, ou esquartejados, ou trespassados; enfim...!
Rapahel - tens razão na observação, o convívio era diferente do que se faz hoje. Não seria mais ou menos, era mesmo diferente.

Anónimo disse...

Há um filme do Ettore Scola que se chama "A familia"e que trata exactamente de uma familia/casa(porque o eixo visual é o de um corredor com portas de um lado e de outro)vistos pelos olhos de uma criança.è um filme extraordinário que passou aí uma semaninha qd. do incendio do Chiado e desapareceu,sem rasto nem reposição à vista...Mas em relação ao post tenho coisas a dizer,muitas e várias.Lá iremos com calma e algum método porque agora.....vou aos saldos.AB

cereja disse...

Estas recordações são mesmo pelos olhos de uma criança da época. Como está definida, uma família 'intelectual' com muitas dificuldades económicas mas anseios culturais. E preocupações políticas. De qualquer modo, mesmo assim, quem ia ao café era o Pai, a Mãe ficava a preparar aulas ou a ler, e a tia velha a cozer meias com um ovo de madeira enquanto conversava.
Serões da época.

Anónimo disse...

Às vezes, na casa grande, o avô não ia ao clube ,depois do jantar.Lá em cima no quarto era dificil adormecer porque a lamparina, que se deixava acesa por causa dos medos, fazia sombras nas paredes e as sombras ganhavam formas pouco tranquilizadoras.O pai saia sempre e a mãe ficava com a avó e as tias na saleta.Tenho ideia de que não conversavam muito.E o avô estava com os "homens"na adega.É que ia haver caça.Iam sair de madrugada.Esse universo de onde eramos excluidos(excepto o primo Luis que já tinha 16 anos)exercia sobre mim um imenso fascínio...e lá vinha, pé ante pé, até à porta que dava para o pátio de cima.E lá ficava descalça, encostada à porta pregada com pregos grossos e sentia o cheiro da pólvora, porque os cartuxos eram cheios ali,do sebo de tratar os arreios,ouvia os copos a bater na mesa ,o embaralhar das cartas, as gargalhadas dos "homens".Depois fugia para a cama porque havia sempre uma "ronda" de alguém para ver se toda a gente dormia.AB

Anónimo disse...

Três cafés na primeira infancia,ou melhor um café e duas pastelarias ou melhor ainda um café uma pastelaria e um sítio onde se comiam as melhores "padinhas" e onde se comprava a escorcioneira.O café era fascinante porque tinha uma porta giratória,podia andar-se à roda e nunca mais se sair de lá.Ao fundo tinha um sítio para a orquestra,mas não me lembro de ver lá nenhuma.As cadeiras tinham cromados grossos e havia dias em que transbordava para a praça.Só homens,safões samarra ou capote,havia quem usasse bigodes e abotoaduras de ouro.Falavam grosso,enrolavam notas e mortalhas de cigarro.As vezes cuspiam.A pastelaria era a "Violeta"(não parecia tão pequena)e o Eça tinha lá escrito artigos para o jornal.Na infancia de Lisboa,logo logo ao princípio,ás vezes ia com o pai vê-lo jogar xadrez no Palladium.E sabia que ele ia encontrar amigos no Avis.Só na adolescencia conheci outros cafés que foram decisivos para o que sou hoje.Mas disso fala melhor o Jorge Silva Melo...e de que maneira.AB

Anónimo disse...

"Hoje vamos ao teatro".Por vezes eu também ia mesmo à revista.E isso tinha uma razão.Os bilhetes eram oferecidos porque havia a chamada "récita de autor"e os meus pais eram amigos de um autor de revista o Amadeu do Vale.Mas também havia camarote para o D.Maria por razões do mesmo tipo.Depois ia-se lá dentro agradecer no final.E era o deslumbramento...tanta lantejoula,tanta pluma,tanto cheiro a maquilhagem.Um dia eu disse"quero ser como elas"(elas eram as coristas).Levei um tabefe.Há coisas nos adultos que não se percebem...Ah!o garoto feio com calções pelo joelho e dentola de fora,ali na 1ªfila, era o Vitor Pavão dos Santos.Não sei se ele levou tabefes(dúvido),mas que se apaixonou até hoje sem dúvida.Ab

Anónimo disse...

Cinema.Ia-se ao Tivoli porque sim.E desatei a odiar o Tivoli.Excepto qd.vi uma coisa chamada"Aguarela brasileira"onde entrava a Aurora Miranda(irmã da Carmen)a dançar com o Zé Carioca...Muito mais tarde entrei no Tivoli por razões muito diferentes,entrei e saí várias vezes e vi aos bocados um filme chamado "Os domingos de Cibelle"...de certeza que a Emiele tambem se lembra dessa sessão...Ah! O S.Jorge onde em férias com mãe e madrinha se assistia a uma coisa chamada "o comboio das seis e meia",com aquele momento emocionante da "dança das cadeiras" e um sketch do Zequinha e da Lélé. Mais tarde emoção,emoção, foi a familia inteira ver a inauguração do orgão de luzes que subia do fosso da orquestra e mudava de cõr enquanto o Gallarza tocava nos intervalos...Ab

Anónimo disse...

E agora porque a ilustração é o Monumental,o Monumental já foi adolescencia para no Carnaval ir ver os concursos de máscaras e baile no foyer...e um pouco mais tarde qd."porta da caixa"já era coisa do meu vocabulário comum,e por ela saía,sempre de óculos escuros e lenço,passo muito miudo,salto muito alto a Laura Alves,que morava logo ali,mas ia cear ao Montecarlo...AB.