domingo, julho 29, 2007

Um Caderno de Capa Castanha VIII - A praia

«Acho interessante, Clara, comparar as minhas idas à praia em pequenita com o que se passa na actualidade.
As minhas férias eram bem grandes, tal como as das crianças de hoje, e a mim pareciam-me enormes. Dividiam-se por fases: Por uns tempos, cerca de um mês, ia para a aldeia, perdida lá no sul, casa de família do meu pai. Depois, que me lembre, alugava-se uma casa na Nazaré ou em S. Martinho, e íamos todos apanhar o ar do mar (mais tarde posso falar disto com mais pormenor), e mais tarde ia para uma outra casa de família que variava.
Mas do que recordo com muitas saudades eram as idas à praia só com a minha mãe, ainda no início do Verão. Uma festa, para mim!
Acordava noite escura. Que excitação! Depois, com o arranjar-me, comer, sair de casa, recordo que já havia luz quando se saía para a rua. Nós não tínhamos carro, aliás como nenhum dos amigos dos meus pais. Era ainda um luxo muito grande nessa época. Portanto a ida à praia era, naturalmente, de transportes públicos. Dava a mão à mãe e lá íamos, eu aos saltinhos e muitas vezes largando-lhe a mão para me sentir independente, até à paragem do eléctrico. Como era tão cedo, apanhávamos um eléctrico que me lembro chamar-se “carro operário” porque quem o usava eram sobretudo trabalhadores dessa classe. Os bilhetes eram mais baratos e comprava-se logo um de ida e volta.
Aí já era uma festa, para mim! Era Verão, mas como era tão cedo estava ainda fresquinho, e se possível ia à janela a apreciar o caminho, entusiasmadíssima. Chegávamos ao Cais do Sodré, comprávamos outros bilhetes e esperávamos um comboio. Claro que não havia tantos comboios como hoje, e eram muito mais sujos porque eram movidos a carvão. De vez em quando apitavam forte e soltavam uma fumarada negra… Mas era uma aventura para mim e sentia-me radiante. De comboio lá se ia, até Carcavelos ou Parede, calculo que as praias de que a minha mãe mais gostava porque era sempre para aí que se ia. E as distâncias parecem-me tão diferentes… Era capaz de jurar que em Carcavelos a praia era longe da estação, mas não deve ser porque hoje não o é. A memória prega-nos partidas, ou são os olhos de criança que vêm as coisas de outra forma.
Bem, o certo é que se chegava à praia bem cedinho, ainda havia muito pouca gente e alugávamos logo um toldo. Isso fazia parte da festa, o luxo daquele telhadinho de lona, só para nós! Não se usava guarda-sóis individuais, e os toldos não deviam ser caros, assim como as barracas, que tinham a vantagem de se poder mudar lá de roupa. Mas a minha mãe mantinha-se vestida e eu, como criança, mudava mesmo ali de roupa. Os fatos de banho eram tão pudicos! Os dos homens tinham um peitilho para tapar a parte do peito, e os das senhoras uma saiazinha que também tapava as curvas mais indiscretas. Já começava então a fazer calor. Ia com o meu balde apanhar água ao mar e vinha fazer bolinhos de areia, ou então passeávamos ao longo da praia a apanhar conchinhas. Cheirava tão bem!!! Lembro-me de um banheiro, a quem dava a mão para dar uns mergulhos, porque a minha mãe, mesmo arregaçando o vestido não podia entrar no mar. E aliás os banheiros eram mesmo … para dar banho! Passavam umas vendedoras de bata branca, a apregoar bolos, mais ou menos como hoje, mas nessa época havia muitas e era a única forma de se comer alguma coisa na praia – não me lembro de haver bares ou cafés. Aquela bola-de-berlim a meio da manhã, era uma delícia e como não havia embalagem para líquidos, para matar a sede a minha mãe levava fruta - um cacho de uvas, uma pêra. E era tudo. Porque cerca do meio-dia, tanto quanto me lembro, regressava a casa. No caminho de retorno eu vinha já mais murcha e um bocadito cansada. O ar do mar, as corridas pela borda da água, as construções na areia, e o apetite para o almoço, já me faziam rabujar e sentir que a volta era mais comprida do que a ida… Mas trazia no bolso as conchinhas que tinha apanhado para fazer um colar, e a recordação do cheiro a mar, da textura da areia, do azul do horizonte. Uma bela manhã, e…no dia seguinte havia outra igual» Clara


6 comentários:

josé palmeiro disse...

Mais uma página magnífica, duma época, aqui nas portas do fundo. Lindo, lindo mesmo!
A minha realidade, foi um tudo nada diferente. Vou tentar compilar as memórias, e um dia destes, ver se as consigo passar.

Anónimo disse...

Um primeiro comentário-o carro operário.Fazia na linha dos eléctricos da rua um barulho diferente,reconhecivel sobretudo no final da madrugada porque passava"por mim"logo a seguir ao último grito da sentinela"Sentinela alerta-Alerta está-Passe palavra"no quartel da frente...A praia de principio de férias, antes da ida definitiva para férias ,era irregular, mas foi muito a praia da Torre.A outra praia era a Praia das Maçãs com ida e volta no famoso electrico hoje restaurado porque a casa alugada era no Vinagre.Sobre isso também falarei mais tarde.AB

Anónimo disse...

Ora cá estão os fatos de banho masculinos de peitilho!
A tua descrição é excelente. Vê-se tudo, acho que até se cheira... E as conchinhas que se apanhavam para fazer colares ou simplesmente encher frasquinhos. Hoje ainda se vendem bolos nas praias, mas não sei porquê não é exactamente o mesmo.
O tem tanta graça um ritual tão completo para uma manhã na praia que hoje de carro se faz sem se planear nada!

Anónimo disse...

Muito interessante.
Realças aqui um aspecto (que a AB também fala) que está esquecido hoje, porque quase há praia todo o ano desde que faça bom tempo. «Nesses tempos», havia realmente um período de praia antes-das-férias, logo no início, e era na zona acessível, a da linha de Cascais.
Gostei muito de ler e relembrar.

cereja disse...

É. Escolhi essa foto também por se ver tão bem os peitilhos dos fatos de banho! :D
Mary - tens toda a razão. Era uma coisa 'de época' essa pré-época-balnear ali pela linha de Cascais. A Praia das Maçãs como lembra a AB também era importante, mas demorava mais a chegar lá, mesmo com o famoso comboio, agora recuperado (recuperado e caríssimo!) Nessa altura não se ia para a Caparica como hoje porque não havia ponte e de barco levava-se bem mais tempo...

Anónimo disse...

Bem escolhido para esta época!
Eu não tive exactamente esta experiência ( as recordações da entrevistada da Clara [madrinha?] são um tanto mais antigas do que eu - que não sou já uma criança...) o que não quer dizer que não goste muitíssimo deste tipo de recordações.