«Da minha infância o que brilha talvez com mais luz são as minhas avós. Tive duas, como toda a gente, e foram personalidades que me marcaram muito, bastante mais do que os avôs.
Profundamente diferentes, seria difícil imaginar seres mais diferentes do que a minha avó paterna e a materna. Gostavam muito de mim, isso eu não tinha dúvida, era a primeira neta das duas, mas amavam-me cada uma “à sua maneira” e o certo é que eu também gostava delas de um modo diferente…
Vou contar-te primeiro como era aquela de quem eu talvez (talvez, não, era certo! digo isto por timidez) gostasse menos: a mãe do meu pai. Era muito bonita. Talvez como a Branca-de-Neve se essa princesa de conto de fadas tivesse olhos azuis-escuros. Pele muito branca, cabelo preto quase azulado, nariz levemente arrebitado e uns enormes e lindíssimos olhos azuis. Formas talvez demasiado arredondadas para a moda de hoje, mas para a época seria o que se chamava ‘bem feita’.
Moravam na mesma rua dos meus pais, numa casa que tinham alugado perto da minha, creio que para estar perto de nós. Posso estar enganada mas já aí se podia ver um certo desejo de controlo e autoritarismo. E era essa a característica mais irritante da minha avó, era a “super-mãe”, a super-mulher. Uma matriarca à antiga, mandava em casa, mandava na família, mandava em tudo o que pudesse mandar. A dona de casa perfeita. Sabia fazer (e fazia!) tudo - mas verdadeiramente tudo - o que uma senhora deve saber. Nascida na província, numa casa creio que senhorial, nunca ela ia à rua tinha sempre quem lhe trouxesse tudo aquilo que queria e precisava. Quando cresci e comecei a entender algumas coisas, percebi que o que ela teria gostado era de ter vivido sempre na casa dos seus antepassados, onde tinha nascido e onde nasceram os seus filhos e que eles depois de casados tivessem ficado a viver lá, com as suas famílias debaixo daquele tecto. Era o sonho, como 'devia ser'.
Como isso não se passou assim, o seu feitio de matriarca teve de se moldar a outro estilo. Contudo a relação com as noras não era das melhores, creio que lá no fundo desejava uma vassalagem que lhe fugia. De qualquer modo era perfeita a seu modo - uma maravilhosa cozinheira, tudo o que era costura não tinha segredos para ela, limpezas, lavagens, engomados, feito por aquelas mãos eram de cinco estrelas. Mas…
Um feitio de enorme exigência, afectuosa sim, mas sem excessos. Achava-me graça, acarinhava-me, lembro-me de algumas ternuras mas sem exageros que não gostava de mariquices. Um beijinho à chegada, outro à partida. As prendas que me davam eram coisas práticas ou úteis. Fez-me muitos vestidos, roupa interior, até meias arrendadas feitas com cinco agulhas, uma coisa que me parecia muito difícil, mas daquelas mãos saía tudo impecável. Não me lembro de nenhum brinquedo que ela me tivesse dado. Mas ensinou-me muitas cantigas, lenga-lengas, contava-me histórias antigas, enquanto preparava o jantar ou cozia as meias. E ensinava-me todas essas 'prendas domésticas'. Não me recordo nunca de a ver parada sem fazer nada, actividade constante mas com calma, com uma confiança serena da pessoa que sabe o que faz e não se engana.
Sem dúvida que me sentia muito protegida ao pé dela. Para mim ela sabia tudo, e transmitia enorme segurança. Era um sentimento bom, mas não era amor. O amor sentia-o pela minha outra avó.»
Clara