sábado, novembro 03, 2007

O Caderno da AB - Canções de Amor II

Avó Margarida – o” outro lado”
O “outro lado” era a designação dada pela minha avó paterna à família da minha mãe.
O “outro lado” tinha várias declinações de sentido, todas negativas. A geográfica, a localização do outro lado da cidade “para lá das portas de Moura”, uma travessa simpática e popular de casas baixas, como se dizia à época, embora na realidade fosse de 1º andar.

A educacional e de comportamento porque ”se saía ao outro lado” sempre que as meias não se apresentavam esticadas ao mesmo nível, sempre que sentada na cadeirinha pequena, os joelhos se não uniam. E a de “origem“ quando, no monte, fugia para casa do Zé caseiro por causa das fatias de pão de casa, grelhadas nas brasas e regadas com “um fiozinho de azeite” e um bocadinho de açúcar, ou, melhor um pouco, uma ”fatiinha” de ”toucinho gordo” igualmente grelhado em cima do pão…
As visitas ao ”outro lado” eram processadas de duas maneiras- ou com a minha mãe e era o espectáculo da alegria de uma reunião de raparigas quando alguma das irmãs estava presente ou então lá ia eu ser depositada, como uma espécie de prenda ou de benesse por uma criada, carregada ao colo até ao cimo da escada que abria directamente numa sala pequena, de camilha ao meio, louceiro onde se enfileiravam chávenas presas pela asa em camarões retorcidos e que abanavam com o andar no sobrado, uma mesinha pequena, sem direito nem avesso, onde repousava a cabeça de uma máquina de costura e o canapé de palhinha, exactamente por baixo do retrato do “paizinho”, bigode à Kaiser e boné da CP. (o “paizinho” era o pai da minha mãe, morto de tuberculose quando ela tinha 9 anos e o último dos 10 irmãos ainda vinha a caminho). E a avó Margarida. Pequenina. Os olhos bem pretos e um sorriso caloroso misturado com o cheiro a canela dos bolos feitos de propósito “ora a minha pequenina veio visitar a sua avó”, ”está bem pode vir busca-la às cinco” e eram histórias de mouros e de fadas de castelos e pastores e algumas de revoluções (mais tarde iria aprofundá-las) tudo numa mistura de sotaques alentejano e castelhano que a avó nunca tinha perdido. ”
Avó canta uma cantiga”. E a avó, que cantava magnificamente, erguia a cara os olhos brilhando mais “Aquela da morena, vó” e ela começava :



Oh. morena
Pois tu não danças
Ou porque cansas
Ou não tens par
Meu senhor
Venho da França
Na minha terra
Não sei dançar.


E eu lá adormecia debaixo do olhar do “paizinho”. Mais tarde soube que esta canção tradicional era uma canção de emigração. A mesa sem direito nem avesso está ali, com nódoas de tinta, porque nela já em Lisboa fiz as minhas primeiras cópias. Nunca vi a avó Margarida na casa grande. Voltarei a ela quando as canções para lá de amor forem de resistência.

AB

9 comentários:

Anónimo disse...

Este sábado vejo, que fica «apenas» a colaboração da AB
Nem é preciso mais.
Comovente como das outras vezes.

Anónimo disse...

Obrigada AB. Obragada por partilhares estas recordações connosco.

Anónimo disse...

Eu e Joaninha, os indefectíveis populianos, esperamos os tesu posts de hoje que chegaram um tanto atrazados, mas valeu a pena.
A AB já se pronou uma referência.
Só que nos deixa sem saber o que dizer...

josé palmeiro disse...

Como eu recordo o "nosso" Alentejo, nos teus escritos!
Absolutamente, sem palavras.

Anónimo disse...

Olha-me esta fulana!Deixa-me sozinha!Amigos quem não sabe o que dizer sou eu...AB

Anónimo disse...

Que excelente post. Que excelente texto, quero eu dizer. Parabéns AB, parabéns Pópulo.

Anónimo disse...

Este tipo de post deixa-me sempre dividido entre o pensar que não se pode dizer nada e o considerar que «merece» que se diga...
Quando digo que «não se pode dizer nada» é porque que comentário posso deixar a um texto destes...? é tão íntimo, tão bem escrito e tão pessoal que desejo conhecer a AB. Mas afinal a magia é maior por a não conhecer... Fico a conhecer a «avó margarida» e ainda bem.

Anónimo disse...

Não sei se a Emiéle deixou este texto assim, sozinho, hoje para o valorizar mais ou por ... estar fora e não ter tempo para maiors escritas.
Mas fosse como fosse resultou em cheio.
O texto merecia o realce.
Foi uma boa aposta.

Anónimo disse...

Donde se pode concluir que a quantidade não tem a ver com a qualidade ou a inversa...
Com um único post, o «dia está ganho».
Não quero dizer que quando escreves 6 o blog fique pior. Apenas o que disse, a qualidade não se avalia por serem muitos ou poucos. Neste caso, não foi preciso mais para ter valido a pena abrir o Pópulo.