sábado, novembro 29, 2008

Momento de Poesia

Poema para Galileo

Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios.)
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.
Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria...
Eu sei...Eu sei...
As Margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!
Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.

Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar - que disparate, Galileo!
- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação -
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.

Pois não é evidente, Galileo?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo de praia?

Esta era a inteligência que Deus nos deu.

Estava agora a lembrar-me, Galileo,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se estivesse tornando num perigo
para a Humanidade
e para a Civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.

Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas - parece-me que estou a vê-las - ,
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calmo,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e escrevias
para eterna perdição da tua alma.

Ai, Galileo!

Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo,
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei.
Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto inacessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo
caindo
caindo
caindo sempre,
e sempre.
ininterruptamente,
na razão directa dos quadrados dos tempos.



António Gedeão «Obra Poética»

10 comentários:

Anónimo disse...

E este poema é daqueles que se ouve
numa voz que cada um de nós inventa e cá fica sussurando como uma mais que intima conversa... quasi uma oração.AB

cereja disse...

Bom Dia AB. Ainda ando por aqui e respondo já - sabes que optei exactamente por deixar a palavra escrita e não 'dita' exactamente porque concordei (e este caso é muito claro) que cada um «ouve» de um modo diferente.
Quis que este poema sobressaísse na sua mensagem, que (bolas!!!) é tão actual.

josé palmeiro disse...

A AB tem, uma vez mais, toda a razão.
Este é um poema, de cada um de nós e, como tu dizes, INTEMPORAL, por isso tão actual.

Anónimo disse...

Ai Galileu!
O mais conhecido «engolidor de sapos» e daquela forma quem o não faria...
O poema é inesquecível!
Mesmo sendo grande, estava a lê-lo e ia dizendo baixinho a frase seguinte.

Anónimo disse...

Lindo!! Uma boa maneira de começar o dia, com um poema visionário , e delicado.Levou-me tambem a Florença onde so estive cerca de 5 horas .É lindissima tudo me encantou mas foi rapido demais.Fiquei com pena mas o o navio nao espera. Tenho de lá voltar para uma visita mais cultural , porque vale a pena enche a alma.

Anónimo disse...

O poema é comprido mas a verdade é que ao fim-de-semana há tempo para se ler isto com calma.
Gosto muito dele, estava assim um pouco esquecido, mas à medida que ia relendo vinha tudo à memória.

Mas ao menos ele engoliu o sapo para salvar a vida, hoje vemos engolir sapos para subir na carreira....

Farpas disse...

Um belo poema para começar o dia! Só descobri este poema há alguns anos mas é daqueles que ficam!

Anónimo disse...

A poesia do Gedeão é mesmo assim, para pensar.

Há muita gente que fica pela Pedra Filosofal, e acha que já está!
Boa ideia a tua de abrires a Obra Poética para mostrar tanta coisa que ele nos deixou.

Vá. Vai deixando outros de vez em quando....

Anónimo disse...

O bom 'velho' Gedeão é um valor seguro.
Todos gostam do que diz e escreve.

E este poema é dos que nunca esquecem depois de se ter lido uma vez!

cereja disse...

Tens razão, Joaninha, O Gedeão é uma 'aposta sem risco' que todos gostamos.
Quanto aos sapos, Mary e King, realmente hoje engolem-se por menos, mas lá marcham!...