domingo, janeiro 06, 2008

Um Caderno de Capa Castanha XIX

A Higiene

Tem-me contado tanta coisa que nem sei bem o que vai ser hoje…
«Olha, Clara, andava a pensar falar-te de algumas pessoas que foram importantes na minha vida de criança, associadas ao tipo de educação que se recebia, mas vai ficar para a nossa próxima conversa. Hoje pensei relembrar contigo uma mudança de costumes de que se fala pouco, os da higiene!»
Como?... Aí os costumes também mudaram?
«Sabes, lembrei-me disso porque ando agora a ler um livro cujo autor, alemão, era adolescente nos anos 40. Falo de Gunter Grass, o livro é o famoso “Descascando a cebola” e conta lá coisas que deram polémica, como sabes. Mas, a certa altura, falando sobre a sua casa, pode ler-se «[…] a sanita no andar intermédio, que era utilizada por quatro inquilinos, tornava-se-me cada vez mais desagradável e até nauseabunda porque era sempre emporcalhada pelas crianças da vizinhança, ou então estava ocupada quando se precisava dela», e noutro passo «[…] onde havia papel higiénico de rolo e não como em nossa casa, papel de jornal rasgado em quadrados».
É interessante porque quando se imaginava a vida «no ano 2000» (que era o futuro-mais-futuro que se podia fantasiar) este aspecto, o das casas de banho, não entrava. E contudo…
Nas casas construídas hoje, é norma haver uma casa de banho por cada dois quartos, se tiver 3 já há direito a ter duas casas de banho. Há chuveiros variados. Sabonetes de todas as qualidades, sólidos ou líquidos. Não apenas há água quente corrente como vem já misturada da torneira, escolhe-se a temperatura que se deseja. As retretes, ou sanitas como se diz hoje, além do aro têm tampa. O papel higiénico é abundante, de mil e uma qualidade, cores, até perfumes. Mas se, com um estalar de dedos, recuássemos ao tempo dos nossos avós isso era um sonho.
Na citação que li, havia uma única casa de banho comum a 4 famílias! E por cá, em ambientes mais pobres também a casa de banho era exterior e reduzida ao essencial: uma retrete e um lavatório. Como a casa em que eu vivia era moderna tinha, além disso, banheira e bidé, mas apenas com torneiras de água fria e os banhos eram todos de imersão, não se conhecia o duche. Vês porque os banhos diários são um costume actual? Todos os dias encher uma banheira 3 ou 4 vezes, e temperar a água fria com panelões de água a ferver que vinham da cozinha, era impraticável para uma família normal. O chuveiro e o esquentador para a água quente foram umas descobertas sensacionais. Também me lembro da tampa da sanita como um requinte. Elas tinham um aro de madeira e mais nada; quando vi que podia haver uma tampa fiquei encantada. E como ele ali refere, só nas casas mais elegantes existia papel higiénico, cortavam bocados de papel normal, muitas vezes de jornal. Havia sabonetes, é certo, mas sem a actual variedade, e de champôs nem me lembro. Acredita Clara, era bem mais difícil ser-se asseado naqueles tempos!»
Clara

16 comentários:

Anónimo disse...

Realmente hoje parecem coisas da pré-história. E contudo não foi assim há tanto tempo!!! Se lermos romances de há 100 anos vamos encontrar ainda mais diferenças, mas estas são de «hoje»

Anónimo disse...

É engraçado que esta coisa das casas-de-banho como aqui se conta é realmente onde houve uma evolução maior. Primeiro, como é evidente a revolução da água canalizada. O tempo dos lavatórios com jarro ao lado, ou bidés idem, não está assim tão longe, mas parece realmente noutro mundo.
E, é claro, o tal saneamento que permitia nas cidades (e hoje até em qualquer sítio desde que haja «fossa») ter-se uma verdadeira sanita, onde a porcaria desaparece pelo milagre do autoclimo!
Por fim, o esquentador, que permite à água canalizada, vir já quente da torneira, e torna as nossas limpezas incrivelmente simples se comparadas com esse tempo dos panelões de água que vinham da cozinha.

Anónimo disse...

Neste momento as casas de banho são uma espécie de cartão de visita da casa onde se expõe para lá dos Jaccuzis e outras maravilhas da técnica toda a parafernália ginástica,as bicicletas fixas e quejandos os enormes espelhos de parede inteira,e claro as marcas cosméticas e perfumistas em todo o esplendor das marcas e respectivos envólucros. è só brilho,para lá das velas nos rebordos das banheiras todo um apelo á demonstração hedonistica e narcísica tão caracteristica dos dias de hoje.Aliás isto sempre existiu mas nos chamados "toilettes".Quem não tem ou não se lembra dos jogos em prata de escovas de cabelo,das caixas em cristal com as borlas do pó-de-arroz, dos perfumes em frascos, belissimos alguns ,obras de colecção que ainda não há muito se podiam encher "avulso"(estou-me a lembrar de uma perfumaria da Baixa chamada "Au bonheur des Dames"e de outra junto à Sapataria dos Teatros na R. da Vitória,se não estou em erro,onde se is comprar colónia ou perfume de "bergamota"para....os lenços de assoar.Agora as casas de banho eram exiguas até meados dos anos 80, tendo havido excepções na arquitectura dos anos 30 a 40, que além da casa de banho principal, incluiam ,ás vezes, uma "pia"que servia de casa de banho a serviçais.Alíás, curiosamente, é quando existe ainda uma arquitectura de autor que depois desaparece dando lugar ao "pato bravismo"que se estendeu e estende ainda.AB

Anónimo disse...

Mas conheci casas fantásticas,enormes, onde a casa de banho era na varanda,mandada fazer á posteriori.AB

Anónimo disse...

Vinha também lembrar, como fez a AB, que havia nas Avenidas Novas por exemplo, casas enormes e até com uma «sala de banho» porque era grande, mas uma só para a família toda e não estava previsto nada para as criadas. Como havia uma pia para os despejos, era aí que as ditas «serviçais» se aliviavam. Quando os patrões tinham algum cuidado, mandavam 'ampliar' essa casinha da pia, e construir nesse anexo da varanda das traseiras, uma minúscula casa de banho para 'o pessoal'.
Olhem que é do nosso tempo!
Quero dizer, aí há menos de 40 anos.

cereja disse...

O facto de que a mentalidade em geral se modificou completamente está nesta historiazinha:
Como contei por aqui, a torneira da minha banheira avariou-se. Antes de comprar uma nova, a minha mulher-a-dias propôs-me uma que tinha «a mais». Ora como é que ela tinha uma «a mais»? Porque a que tinha na sua banheira se tinha estragado e portanto ela comprou uma nova. Mas essa nova, por sua vez, avariou-se também ao fim de dois dias. Como tinha garantia mandou-a arranjar, mas nesse entretém comprou uma segunda torneira nova (já estão a ver em quantas dezenas de euros a coisa está) porque tinha de dar banho à neta. Ora a neta tem 3 anos. A água para lavar uma criança de 3 anos pode perfeitamente ser aquecida em panelas num fogão, como se fazia nestes tempos que aqui são falados. E esta senhora de cinquenta e tal anos, nascida numa aldeia do Minho, conta-me coisas da sua infância onde tinha falta de tudo e decerto não tomava banho de chuveiro. Certo, mas hoje é uma desgraça se a cachopinha de 3 anos não tomar o seu chuveiro como deve ser. Nem que a avó gaste nisso uma quantidade de dinheiro.
São outros tempos!

Anónimo disse...

Mais uma vez venho aqui aprender uma série de coisas.
(já sei que o comentário da AB vai sair amanhã em post :D)

josé palmeiro disse...

Como me lembro de todas as nuances que aqui são descritas. A primeira casa que habitámos, tinha uma pia de barro, na cozinha. Os banhos eram dados/tomados numa banheira redonda, de zinco. Depois mudámo-nos par outra casa que já tinha uma "retrete", no quintal e quanto aos banhos continuavam iguais. À terceira, foi de vez, uma casa de banho como deve ser, grande e com todos os apetrechos, contudo a água continuava a vir do fogão, em panelas, até que apareceu o primeiro esquentador. Mas o que recordo para ilustrar este escrito é a casa de banho colectiva que nos proporcionaram, corriam os anos sessenta, em Mafra. O hotel era o convento e nós eramos cerca de trezentos homens, distribuidos em camas de dois andares numa caserna abjecta, que tinha, ao fundo as Casas de banho, sempre com água fria, seis sanitários turcos, seis bacias e três chuveiros. uma maravilha da técnica e da indignidade, mas havia que treinar os futuros oficias da tropa portuguesa com a indignidade mais coonsentânea, com as condições que teria que defrontar nos anos subsequentes, ainda que não por eles mas pelos seus comandados.

Anónimo disse...

inda aqui volto porque acho giríssimo que estes posts do Era uma vez... são tipo «dois em um». O que a Emiéle (ou Clara...?) escreve é sempre interessantíssimo. Depois os comentários, sobretudo Palmeiro e AB vêm completar o que parecia já excelente.
Uma lição em muitos episódios.

Anónimo disse...

Ainda hoje há diferenças abissais, entre o ambiente que descreve a AB, em casas modernas e boas num grande centro, e nessas aldeias em casas velhas e mal conservadas. Muitas vezes, apesar de existir um esquentador, a água quente não é distribuida, e tem de se fazer a 'mistura' à mão digamos assim. destemperando a água fria com a que se vai buscar ao esquentador.
Por isso a história que a Emiéle conta no comentário, é curiosa. Afinal é uma aldeã que se integrou tanto na cidade (e se calhar vendo e limpando casas de banho chics com o a AB descreve) que já sente como uma necessidade básica uma coisa que seria um tanto secundário: uma torneira misturadora...

Anónimo disse...

Olha Raphael,na minha casa que tinha 17(leste bem)assoalhadas só havia uma casa de banho,grandinha,com janela para um saguão(luminoso)e tinha uma banheira de esmalte com pés.Debaixo dessa banheira,lá mesmo no fundo,encostado á parede, era onde eu escondia os livros proibidos ou censurados por uma paternidade temerosa das ideias estranhas que, a uma rapariga, alguns livros pudessem trazer...AB

josé palmeiro disse...

Lindo AB!
As coisas que temos nos nossos sótãos!
Um abraço para ti e para todos neste dia de Reis.

Anónimo disse...

São este tipo de posts que tornam o Pópulo único.
Excelente!
Assim se escreve a «sociologia da vida familiar» dos últimos decénios.

Anónimo disse...

Ainda sobre o Futuro-mais-futuro: a Ano 2000 havia na Ilustração Portuguesa uma rúbrica de ficção que era sobre Lisboa do Ano 2000.Estamos a falar de numeros de 1906, por exemplo, e há desenhos que imaginam a zona ribeirinha ,para onde hoje é o Parque das Nações, duma forma que curiosamente se assemelha ao que foi agora construido.Se puder "Scano" e mando a Emiele e ela publicará se puder.Mas é tão interessante.AB

Anónimo disse...

Ah e obrigada Zé Palmeiro.AB

cereja disse...

OK, AB. Mesmo que me emprestes e eu scanarize aqui, mas tinha muito interesse ver isso.
É das coisas que acho interessante ver em que coincide e em que diverge as imagens que se tinha do famoso tempo após 2000!