segunda-feira, novembro 26, 2007

O «Caderno» da AB

(em comentário a este post, escreveu a AB:)
Por acaso o Conde Redondo tem um enquadramento curioso. Hoje é palco de inúmeras manifestações de travestis e prostitutas de mistura com uma população envelhecida que convive magnificamente com tudo isso. Experimentem ir a uma das leitarias das transversais ou muito cedo ou ao cair da noite e vejam...Lá mais para baixo quase junto à R. de St. Marta vem o negócio das Sex shops com cartazes do mais divertido que há em termos de mitologia sexual. Mas no princípio do século passado a zona era considerada de "gaioleiros" (a construção era em gaiola uma estrutura de época) e os construtores, apelidados de acordo com a construção, instalavam ali as suas famílias de 2º, ou seja senhoras por conta, das quais tinham filhos que legitimavam. Apesar disso a separação das águas sociais continuava a não desaparecer com a legitimação e as senhoras lá se davam entre si mas parava por aí... A Gonçalves Crespo por acaso foi morada de gente de teatro, algumas coristas e gente de bastidores, costureiras de palco, por exemplo, ou até gente de claque. Era muito engraçada esta espécie de estratificação social à revelia da oficial...era a época dos "quartos independentes" uma forma de negócio que se por um lado servia os estudantes por outro mascarava outra realidade que tinha sido abolida por decreto, se não me engano de 62, que acabava com as casas de toleradas...
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E tudo isso com a proximidade de uma zona altamente aristocrática que era o Paço da Rainha....mas desandando lá se ia até S. Lázaro e daí a Almirante Reis e ao Intendente era um salto. Lá em baixo quase na esquina da R. de S. Lázaro com a Almirante Reis esteve um dos mais emblemáticos sítios do "bas-fond" lisboeta que dava pelo nome de Bolero. Tinha uma orquestra de ceguinhos e teve como porteiro uma das personagens mais curiosas de Lisboa. Chamava-se "Beringela", era amigo do Belarmino do filme do Fernando Lopes, foi guarda-costas do Salvação Barreto e fez "O recado" do Fonseca e Costa. Morreu há anos de gangrena, a boémia bebida até ao âmago, alimentado no refeitório da Tóbis ou no da RTP por amigos das noites e dos copos. Trazia às vezes consigo outro amigo o João Franco, rapaz fugido cedo á família, de um humor corrosivo e altamente inteligente e que é o boémio que mais casas de banho de cafés conhecia em Lisboa pelo simples facto de nelas dormir depois do fecho, a gabardina ou o casaco encostados ao assento dos sanitários. A alternativa era as "casas de corda" a última existente era ali ao Fala-Só, um prédio arte nova, lindíssimo, governada por um galego. E a Paula outra "casa de corda" onde de quando em vez também pernoitava o Pacheco. Não é só uma "Crónica dos dias tesos" é toda uma cidade que pulsava aos olhos de adolescentes para quem a palavra preconceito dizia pouco e para quem as rígidas regras familiares estavam em derrocada total. Já por volta dos anos 80 o Bolero voltou ao seu nome original "Duina Bar". Depois fechou definitivamente quando a esquerda se foi "jamaiquizar" como diria o EPC e hoje é uma loja de cintas e soutiens fatelas o que não deixa de ter a sua graça. Do Pinto, o gerente, o homem que fiava as ceias de bacalhau das madrugadas não sei nada e da Lurdinhas que deve ter iniciado vários dos meus amigos e que dizia "coitados, estão por aí sozinhos, querem é um ombro para dormir" depois de um depoimento para um filme do João César que se chamava "E que farei eu com este livro?" não mais ouvi falar...Mentira, vi-a uma vez à mesa de família de um amigo também já ido porque precisava de qualquer coisa e as noites eram solidárias.
AB

10 comentários:

josé palmeiro disse...

Pois é AB, riquissimas memórias!
Foste lembrar-me o "Beringela", homem com todo o passado que referes e mais algum, natural de Estremoz, da rua dos Currais, mesmo ao pé da Barbearia do Américo. Fizeste com que as lágrimas aflorassem, de felicidade, com esse retorno, a tempos que vivemos.

Anónimo disse...

Já ontem tinha lido estes textos em comentários, mas é claro que passado a categoria de post, tem outro brilho!

São realmente memórias preciosas.
E, muita, muitíssima coisa, que eu não sabia, mas a minha vida tem sido bem mais pacata :D

Anónimo disse...

É uma zona, tal como a AB descreve. De noite nem se pode passa por lá! E ainda hoje é uma misturada social, muitas velhinhas e alguns casais jovens que se aventuram a arranjar lá casa, para além de muitas firmas e coisas assim.
Mas à noite é complicado passar por lá.

Anónimo disse...

Também tinha lido ainda ontem à noite, mas é melhor comentar um post do que comentar um comentário.
Essa boémia de Lisboa, e sobretudo a parte do início do século XX é uma coisa que poucos conhecem.
Obrigado à AB por nos iniciar.

Anónimo disse...

Há aí muitos nomes que só conheço de ouvir falar (sou mesmo de outra geração)
Mas sentir a História, aqui na ponta do nosso dedo, é comovedor.
Que excelentes «Era uma vez...»

Anónimo disse...

Excelente!

Anónimo disse...

É uma zona de Lisboa muito dada à tal vida nocturna há umas dezenas de anos, mas que hoje se deslocou mais para as docas e tal.
Bom, claro que não digo que seja o mesmo, mas é pelo menos prima da outra.
Os conhecimentos da AB, são notáveis.

Anónimo disse...

Obrigadissima amigos,isto hoje foi uma saga para conseguir aceder ao Populo.Enquanto alguns dos textos que a Emiele tem passado a posts tiveram,enfim,um propósito de post estes foram mesmo comentários...No entanto devo um esclarecimento:muitos dos personagens que aqui referi,conheci de facto,como conheci muitos outros, que foram referencias de uma determinada Lisboa que se foi diluindo, por razões várias, a partir dos meados da decada de setenta, principio da de oitenta.De outros tenho gravações e entrevistas que são documentos sociológicos que considero notaveis.Durante alguns dos ultimos anos pesquisei aquilo que chamo genericamente "Boémia"de Lisboa,seus lugares,caracteristicas,grupos,con-frontos,A partir dos anos 10.Tenho aprendido muito e divertido muitissimo.E já que a Emiele começou...lá foi a talhe de foice...AB`*

cereja disse...

Pois é, a nossa AB não escreveu estes comentários com a ideia de ficarem tão expostos, mas achei que seria uma mais valia para o famoso «Era uma Ves....» e pelos vistos todos vocês concordaram.

ContraCosta disse...

Falar do Duina/Bolero/Duina rsrs e não falar do saudoso Pinto, mais conhecido por Pintão é uma grande injustiça. O Pinto que tantas vezes nos perdoava a cerveja e tantas vezes nos emprestava $$$ para irmos para casa de madrugada. O Pintão que, lá pelas 3 da madruga nos chamava ao andar de cima para um caldo verde e um chouriço assado. Onde estejas, Pintão, um forte abraço