domingo, fevereiro 24, 2008

Um Caderno de Capa Castanha XXIV - Avós 1

«Da minha infância o que brilha talvez com mais luz são as minhas avós. Tive duas, como toda a gente, e foram personalidades que me marcaram muito, bastante mais do que os avôs.
Profundamente diferentes, seria difícil imaginar seres mais diferentes do que a minha avó paterna e a materna. Gostavam muito de mim, isso eu não tinha dúvida, era a primeira neta das duas, mas amavam-me cada uma “
à sua maneira” e o certo é que eu também gostava delas de um modo diferente…
Vou contar-te primeiro como era aquela de quem eu talvez (talvez, não, era certo! digo isto por timidez) gostasse menos: a mãe do meu pai.
Era muito bonita. Talvez como a Branca-de-Neve se essa princesa de conto de fadas tivesse olhos azuis-escuros. Pele muito branca, cabelo preto quase azulado, nariz levemente arrebitado e uns enormes e lindíssimos olhos azuis. Formas talvez demasiado arredondadas para a moda de hoje, mas para a época seria o que se chamava ‘bem feita’.
Moravam na mesma rua dos meus pais, numa casa que tinham alugado perto da minha, creio que para estar perto de nós. Posso estar enganada mas já aí se podia ver um certo desejo de controlo e autoritarismo. E era essa a característica mais irritante da minha avó, era a “super-mãe”, a super-mulher. Uma matriarca à antiga, mandava em casa, mandava na família, mandava em tudo o que pudesse mandar.
A dona de casa perfeita. Sabia fazer (e fazia!) tudo - mas verdadeiramente tudo - o que uma senhora deve saber. Nascida na província, numa casa creio que senhorial, nunca ela ia à rua tinha sempre quem lhe trouxesse tudo aquilo que queria e precisava. Quando cresci e comecei a entender algumas coisas, percebi que o que ela teria gostado era de ter vivido sempre na casa dos seus antepassados, onde tinha nascido e onde nasceram os seus filhos e que eles depois de casados tivessem ficado a viver lá, com as suas famílias debaixo daquele tecto. Era o sonho, como 'devia ser'.
Como isso não se passou assim, o seu feitio de matriarca teve de se moldar a outro estilo. Contudo a relação com as noras não era das melhores, creio que lá no fundo desejava uma vassalagem que lhe fugia. De qualquer modo era perfeita a seu modo - uma maravilhosa cozinheira, tudo o que era costura não tinha segredos para ela, limpezas, lavagens, engomados, feito por aquelas mãos eram de cinco estrelas.
Mas…
Um feitio de enorme exigência, afectuosa sim, mas sem excessos. Achava-me graça, acarinhava-me, lembro-me de algumas ternuras mas sem exageros que não gostava de mariquices. Um beijinho à chegada, outro à partida. As prendas que me davam eram coisas práticas ou úteis. Fez-me muitos vestidos, roupa interior, até meias arrendadas feitas com cinco agulhas, uma coisa que me parecia muito difícil, mas daquelas mãos saía tudo impecável. Não me lembro de nenhum brinquedo que ela me tivesse dado.
Mas ensinou-me muitas cantigas, lenga-lengas, contava-me histórias antigas, enquanto preparava o jantar ou cozia as meias. E ensinava-me todas essas 'prendas domésticas'. Não me recordo nunca de a ver parada sem fazer nada, actividade constante mas com calma, com uma confiança serena da pessoa que sabe o que faz e não se engana.
Sem dúvida que me sentia muito protegida ao pé dela. Para mim ela sabia tudo, e transmitia enorme segurança. Era um sentimento bom, mas não era amor. O amor sentia-o pela minha outra avó.»

Clara


11 comentários:

Anónimo disse...

Aqui há uns tempos falei de uma avó ,a materna, a propósito de canções de amor.A Emiele passou o comentário a post.Também disse que voltaria a falar dela quando as canções fossem de resistencia.No esteio das canções do Zeca e já que a Clara se pôs a falar de avós acho que é altura de pagar a promessa.Mando à Emiele.Ela depois fará como entender.AB

josé palmeiro disse...

Acabei de chegar e deparo-me com este documento, que merece toda a atenção e disponibilidade, que não se coaduna com este momento. Vou tentar, voltar mais tarde.

Anónimo disse...

Deixei um comentário no primeiro post -a contar de cima, eu sei que isto se lê ao contrário mas não me dá jeito - e não ia dizer mais nada, mas esta série do Caderno de Capa Castanha (fui verificar nas entradas desta categoria e agora já sei porque se chama assim) é magnífica!
Neste caso, a personalidade desta avó não é característica da época em que viveu, creio eu que é eterna, sempre houve e deve haver pessoas assim. Mas apesar de tudo, o "recolhimento" de que falas, a senhora que não ia à rua porque parecia mal, isso desapareceu. Claro que ainda existe mas, com a tua licença, como doença mental...
Mas por aquilo que sei, na época em que falas, em certas classes sociais isso era tal e qual.
Muito interessante.
KIM

cereja disse...

Eu sei, AB que também tiveste 2 avós bem diferentes... E dignas de referência, manda-me o texto que decerto vai aparecer aqui.
Como ali o Kim referiu, este post é mais intimista, e personalidades assim sempre existiram. Hoje temos donas de casa super-perfeitas, cordon-bleu que sabem tudo (e às vezes nem dão as receitas...) e matriarcas vai continuar a haver. Esta recordação que a Clara aqui deixou na sua série de entrevistas, não pretende ser um exemplo da diferença da vida de há 60 anos para cá, mas como recordação, encaixa aqui...

josé palmeiro disse...

Visão naturalmente feminina do facto, achei delicioso!
No meu caso, a referência vai para o avô materno porque, sempre presente.
A avó materna, nunca a conheci, pois tinha falecido, antes de meus pais se casarem. Quanto aos do lado paterno, havia um relacionamento, ditado pela distância e pelo, mau feitio da minha avó, que era tão matriarca que motivou a saída de casa do meu pai com onze anos incompletos, motivando a sua ida para Lisboa, para o mercado de trabalho. Conhecador das realidades, que nunca me foram escondidas, mantinha um relacionamento circunstancial com o lado paterno da família, onde se inclúia uma tia e três primos e se resumia a ir passar, as festas de Agosto à terra onde viviam onde, diga-se de passagem, sempre me trataram bem. Ressalvo o meu avô paterno, José como eu, que sempre me acarinhou e, de entre outras coisas, me passou o gosto pela música, ele que quando vinha a casa dos meus pais, adorava ouvir a RDP-2.
Agora, o meu avô materno, era um companheiro e um amigo, que nunca poderei esquecer.

Anónimo disse...

Quando se diz «duas avós como toda a gente» nem sempre é assim. Bom, geneticamente claro que todos temos duas avós, quatro bisavós etc... Mas ter duas vós vivas e próximas de nós nem sempre acontece, até acontece pouco na minha opinião.
Eu sempre tive imensa pena de ser um desses casos. Uma das avós tinha morrido muito antes de eu nascer, e a outra vivia longe, na terra e vi-a aí no máximo umas duas vezes por ano - Natal às vezes e férias grandes outras vezes. Não digo que não gostava dela, mas.. era uma estranha, tenho de o dizer.
Sempre invejei os meus amigos que falavam das suas avós, dos mimos que recebiam, ou até dos caprichos que elas lhes aturavam.

Anónimo disse...

Um post dos intimistas.
Também gosto.
Afinal vem mais ao menos a seguir ao da ama (já não me lembro do nome, mas lembro da ternura com que foi falada)
Esta avó é bem mais fria.
Esperemos que «a outra» seja como aqui se dá a entender o oposto!

Anónimo disse...

Realmente como chamou a atenção o sem-nick (esta de um nick ser sem nick é cá uma confusão!!!) a verdade é que nem todos tivemos duas avós. Salvo seja, é claro!
Eu sou dos que teve apenas uma, a outra morreu era o meu pai pequeno, e o meu avô não voltou a casar.
Mas a minha era muito diferente desta de que aqui se fala. A mãe da minha mãe passava o tempo a «deseducar-me» como os meus pais se queixavam, a fazer-me todas as vontades mesmo as que eu nem chegava a pedir...
Sempre pensei que ela tinha tido pena de só ter tido raparigas e um rapaz, mesmo «em segunda mão» (filho de uma filha) lhe dava muito consolo!
Tive um mimo tremendo dado por essa avó!

Anónimo disse...

Este tipo de posts faz invocar inevitavelmente, as nossas próprias memórias.
A AB vai contar-nos as dela (e estou muito interessada, porque as recordações dela tem sido excelentes!) mas a verdade é que cada uma de nós lembra-se das suas.
E estou um tanto divertida, porque ao contrário dos homens que me antecederam ( o sem-nick e o King) eu então tive 3 avós!!! A sério.
Uma avó materna, e duas avós paternas! A materna, era a mulher do meu avô e mãe da minha mãe como o nome indica; do lado do pai, os meus avós tinham-se divorciado e o meu avô voltou a casar, portanto tinha como avó a mãe do meu pai é claro e ainda a mulher do meu avô, que era também uma querida!
Era um luxo! (ainda por cima estas duas avós paternas até se davam bem, porque não tinha sido por causa da segunda mulher que ele se tinha divorciado e não havia nenhum rancor, era uma coisa muito "moderna" como se vê hoje...)
Contudo os feios eram realmente completamente diferentes. Eu gostava de todas e sentia-me mimada mas não demais.
São boas recordações.

Anónimo disse...

Errata: os FEITIOS! é que eram diferentes (claro que os "feios" não dá com nada, mas não sei se entenderam)

Anónimo disse...

Gostei muito de ler esta interven-ção no Caderno de Capa Castanha.
Felizmente hoje em dia escreve-se muito sobre os Avós. Bem hajam.
Ana Elisa do Couto, Penafidelense falecida em Novembro passado, foi a Sra. que lutou abnegadamente durante 17 anos para que este dia que ela própria propôs «26 Julho» fosse oficializado e consagrado aos avós Portugueses e de outras partas do mundo. Ela divulgou esta data quando visitava alguém, em diversos países, Brasil(muito), França, Alemanha, Itália, RUnido, Africa Sul,Luxemburgo, Argentina. Pessoalizou com João Paulo II esta sua caminhada solicitando-lhe seu apoio o que aconteceu através da nunciatura apostólica portuguesa.
Em 2003 quando recebeu p/telefone a notícia da aprovação unânime p/ assembleia da republica,
disse-me: já posso morrer, parto feliz. Custou muito mas consegui!
Sou seu filho e continuarei a dar seguimento ao seu objectivo, nunca mais deixar esmorecer a celebração do Dia Nacional dos Avós.
Através dos meios de comunicação e iniciar um projecto literário onde serão divulgados documentos, fotos e especialmente a sua veia poética
Bem hajam e continuem a preencher as folhas do Caderno Capa Castanha
A J Couto Faria
quatrois@hotmail.com