domingo, janeiro 20, 2008

Livros


Aos Domingos tenho deixado aqui, desde há uns tempos, um post da categoria “Era uma vez…” a que tem correspondido a «série» do tal Caderno de Capa Castanha que tem referido recordações com dezenas de anos.
Mas hoje, venho contar uma experiência que ‘encaixa’ na categoria não sendo de modo nenhum uma das histórias do Caderno.
Nos últimos tempos tenho andado a ajudar uma prima que está a desmanchar a casa que foi dos seus pais. É uma tarefa dura. Dura sob vários aspectos – implica relembrar uma vida, ou várias vidas até, inventar soluções porque tem de se dar destino às coisas e corta o coração deitá-las fora, mas o certo é que também é materialmente impossível guardar nas nossas casas, já bem cheias, o que existia na casa dos nosso pais.

Mas o que tem sido mais complicado é tratar da biblioteca.
Filha, neta, bisneta de intelectuais, ela herdou aquela biblioteca com mais de 5.000 volumes. É um deslumbramento mas... tinha de ser orientada para outro lado, que no fim do mês tinha de entregar a casa. Temos portanto passado horas e horas e horas rodeadas por livros, a tentar ‘peneirar’ aquilo tudo – a grande maioria irá para uma biblioteca pública que aceitou aquele espólio, contudo também existem ali muitos livros a que se pretende dar outro destino. Temos livros, dezenas, centenas delas, com autógrafos dos seus autores. Como o avô também foi um escritor, encontramos livros com dedicatória de uma quantidade imensa de outros escritores. Esses foram postos de lado, porque faz alguma impressão não os guardar… Por outro lado, também lá existem exemplares muito antigos, edições do século XIX, primeiras edições, e a minha prima quer ouvir a opinião de um especialista sobre o valor real daqueles volumes.
Ora bem, o que eu queria sublinhar (e por isso creio que este post se situa bem no «Era uma vez…») era o facto de para o meu tio o livro ser um objecto de amor.
Por um lado, aqueles milhares de exemplares tinham sido todos catalogados e cada livro tinha uma ficha. Infelizmente (muito infelizmente!!!) na última mudança tinha-se chamado uma empresa ‘especializada’ que os tinha tirado das prateleiras de qualquer modo, e voltado a colocar depois também a trouxe-mouxe, de modo que o trabalho que ele teve não serviu para nada…
Mas, o mais interessante, é que todos, ou quase todos, os livros tinham uma capa. Os mais recentes tinham capas transparentes, estavam protegidos mas conseguia-se facilmente ver que obra era, contudo os mais antigos estavam forrados com um papel que se comprava para esse efeito, mas era opaco. Embora muitos deles tivessem o nome escrito à mão na lombada, para se conseguir ver a data tinha de se remover esse forro. Calculam o trabalho que nós tivemos…? Um por um…?!

Contudo o que eu pretendia sublinhar era o cuidado, quase o carinho, com que os livros eram olhados. Milhares. Muitos milhares mesmo. Porém, cada um com a sua ficha, cada um encapado para se proteger dos possíveis estragos. Era realmente uma época diferente. Uma época onde havia mais tempo. Onde se considerava prioridade conservar um livro em bom estado. Mesmo que nas prateleiras existissem mais cinco mil…



(Aquilino Ribeiro, oferece o Romance da Raposa)

14 comentários:

méri disse...

É um deslumbramento!
Só é pena estarem a fazer tudo isso sob pressão do tempo.

Anónimo disse...

(Olá Méri! ahahaha... não deixa de ter graça!)
Claro que entra na caixinha dos Era uma vez..., está cá tudo!
Realmente revisitar-se uma biblioteca é uma coisa maravilhosa, mas com essa pressa perde a graça toda. Que pena não terem uns largos meses para esse trabalho.
Que giro a dedicatória do Aquilino. Imagine-se - 1924!!!!

Anónimo disse...

Habituas-nos mal.
A gente já aparece aqui ao Domingo à espera destes posts. Um domingo que não possas vai der um desastre.. :D

Este está um primor!
Como nós cuidávamos realmente dos livros com capas de um papel que tinha uma espécie de uns cachos de uvas num tom mais claro, havia em azul, rosa ou verde. Os meus de estudo foram todos forrados assim!

Anónimo disse...

O sem-nick adiantou-se... Ia dizer o mesmo. Lembro-me bem desse tipo de papel, tipo kraft, que tinham desenhado num tom ligeiramente mais claro umas folhas ou coisa assim. Também forrei todos os meus livros escolares assim. mas imaginar que se forrassem os livros de uma biblioteca, é obra!!! Que cuidadoso. Seria um tanto obsessivo?...
Mas a descrição fez-nos imaginar, muito bem o ambiente e o vosso trabalho!

Anónimo disse...

Mas é claro que uma empresa "especializada" tinha de ter sido industriada de que os livros tinham de ser transplantados tal como estavam! Estás a ver os carregadores, se calhar imigrantes, a levarem 5.000 volumes por ordem?! Mas foi uma pena, porque se estavam catalogados (e deve ser por isso que a capa não fazia mal, o teu tio sabia o que tinha em cada prateleira) tinha sido muito fácil, era só passar ficha a ficha.
Realmente fizeste muito bem em escrever este post. É mesmo um «Era uma vez...» como dizes hoje as coisas tem outro aspecto.

josé palmeiro disse...

Este escrito é daqueles que não tem comentário possível.
Diremos alguma coisa, mas tudo, fica por dizer.
Do ponto de vista profissional, já tal me aconteceu, quando do desmantelamento das Bibliotecas Itinerantes da Fundação Caloute Gulbenkian. Não seriam assim tão personalizados, como os que descreves, mas eram acervos de inimaginável valor. Depois foi o desmantelamento do próprio serviço de Bibliotecas, da Fundação, onde havia monografias com as fichas de leitura e aperciação da comissão de leitura, anotações preciosas, que foram diluídas, na "espuma dos dias". Por isso entendo, tão bem, o drama que voçêsm têm entre mãos.
Permite-me um reparo ao King: Amigo, não será pelo facto de, se calhar, até serem imigrantes, que cuidaram assim, tão despreocupadamente, da coisa, entendes-me?
Quanto às dedicatórias, é um amor essa do Aquilino, eu tenho a honra de ter algumas também e guardo-as com um elevado carinho.
Por fim, porque será que essas coisas terão que ter "TEMPO", para ser feitas? Será porque vivemos, num tempo sem tempo?

Anónimo disse...

Um post enternecedor, cheio de sensibilidade.
E o comentário do José Palmeiro vem enriquecer, com a sua recordação, o que aqui se diz.
A verdade é que «desmanchar» casas é terrível. Sempre foi, creio eu, apesar de inevitável. Vem milhares de recordações e memórias ao de cima, são vidas que acabam mas continuam em nós (isto parece uma pieguice, mas não sei como o dizer...)

Quanto aos livros em si, há quem os AME realmente como tu dizes, quem apenas os utilize, e quem não ligue nenhuma. Conhecemos de tudo. Mesmo hoje há quem tenha muito cuidado, esse amor que tu dizes. Contudo o tempo para cuidar deles com esse desvelo, se não é um profissional como parece ter sido o caso do Palmeiro é que é difícil de conseguir.

Anónimo disse...

Não, Palmeiro, não estava a desmerecer os imigrantes, mas a constatar que, cada vez mais, os trabalhos mais desqualificados são feitos por imigrantes - até muitas vezes com uma boa formação no seu país. Contudo, o que estava a querer dizer é que se a pessoa que ordenou a mudança não deu orientações claras, e se tinham ordens para se despachar depressa só poderiam ter tirado os livros apressadamente e sem ser por ordem. No caso de serem imigrantes, e não saberem português, mais ajudava a isso. Podiam ter tido cuidado com eles como objecto, mas dificilmente com a sua ordem...

Anónimo disse...

Olha que a tua prima deve informar-se bem da qualidade do especialista que consultar. Por um lado a gente pensa que alguns livros por serem antigos têm mais valor do que aquele que depois nos dizem que têm (já passei por essa desilusão) mas por outro lado, às vezes há edições - nem precisam ser as primeiras - que têm mais valor do que se julga. Há casos onde uma segunda edição tem mais valor do que uma primeira. Este é um campo delicado, e era bom ela informar-se bem.

Anónimo disse...

Como sempre,tu tens imensa cautela e gosto para as ilustrações que escolhes (se bem te lembras eu costumo chamar sempre a brasa a esta sardinha, por gosto e formação...)
Apreciei especialmente neste post, a ilustração de cima, que parece mesmo 'verdadeira', no sentido de quase nos levar a acreditar que foi uma foto que tiraste tu mesma... E depois o retoque, da imagem final, essa sim, obviamente obtida pelo teu scaner! Parabéns. Um post em harmonia total, o texto e a imagem!

josé palmeiro disse...

Certo King, agora compreendi a tua ideia.

Anónimo disse...

O que tem piada aqui no Pópulo é que até parece um forum... (e eu não engraço lá muito com os foruns...) a gente dá uma resposta e tem resposta à resposta.
:))
Também tinha a impressão de que não me tinha explicado bem, Zé Palmeiro. Fizeste bem na tua nota em chamar a atenção.

saltapocinhas disse...

esse livro devia ser meu :)

ora aqui está um trabalho que eu adoraria fazer: andar a cuscar livros antigos!

cereja disse...

Tchi... tanta gente a dar a sua opinião!... Nem consigo responder a todos, de modo que fico pela Saltapocinhas que achou que o livro devia ser seu: pois, mas afinal está aqui na minha família :D e tens razão que o trabalho foi fascinante mas impedido de ser melhor devido à pressa. Reconheço, contudo, que fiquei com muita pena de não poder demorar-me mais a ver tudo aquilo. Se a minha casa tivesse mais uma divisão ainda me candidatava a muita daquelas coisas!