domingo, novembro 04, 2007

Um Caderno de Capa Castanha XX – "Festas de Anos"

«Falo-te hoje de umas recordações que são simplesmente «minhas». Ao contrário do que te tenho contado até aqui, desta vez não tem nenhuma importância o facto de eu me situar na década de 40 ou 50, porque possivelmente não haverá uma grande diferença com os dias de hoje. O que conto tem mais a ver com os hábitos ou rituais de cada família.
Hoje venho falar de «festas» mas não ‘Natal’ ou ‘Fim-de-Ano’, que isso vai ficar para outra altura mas sim de
Festas de Aniversário.
Sabes bem que há quem brinque comigo por eu gostar de fazer umas ‘festas caseiras’, quer no dia dos meus anos quer no das pessoas da minha família. Gosto, sim senhora. Ainda hoje, com a minha idade, como gosto de ter os meus amigos comigo no meu dia de anos, prefiro tê-los na minha casa do que ir jantar a um restaurante, por exemplo. Mas a verdade é que o dia de aniversário era um dia muito especial, na minha família, o nosso dia entre todos os outros do ano, percebes?
Na minha casa, o dia de anos que recordo melhor era o da minha mãe. Ela nasceu com a Primavera, e lembro-me desde sempre, madrugada ainda, ouvir tocar à campainha e aparecer à porta a maior braçada de flores que se pode imaginar! Aos meus olhos as flores pareciam andar sozinhas, mas quem as trazia era
a velha ama da minha mãe que desaparecia completamente atrás delas. Depois de a ter criado, ela já idosa, tinha ido viver com o marido para uma quinta, onde além de legumes também cultivavam flores, e a prenda que lhe trazia todos os anos era aquele pedacinho de jardim. Lindo!!! Porque para além de rosas e cravos tão banais hoje, também ali apareciam ervilhas de cheiro, violetas, goivos, de que me lembro melhor por serem muito perfumadas e a minha mãe apreciar imenso. Mas, naquela braçada enorme, vinham também outras flores cujo nome já não me lembro, e não se encontram em floristas mas com grande colorido e que transformavam completamente a nossa casa!
Portanto, a primeira actividade desse dia era o arranjo das jarras, o que dada aquela abundância era trabalho para muita gente…
Além disso, nesse dia a casa ficava sempre linda. Pelo menos aos meus olhos, mas acho que se mostrava particularmente bonita nos dias de festa – o chão enceradíssimo, os vidros a brilhar, os metais areados de véspera, tirava-se dos armários porcelanas, cristais, pratas se houvesse e, quando não havia na nossa casa, a minha avó providenciava com as preciosidades de casa dela. Lembro-me de um lindíssimo samovar de prata que, sendo da minha avó, aparecia sempre na nossa casa em dias de anos.
Mas se esse samovar era para o chá que, naturalmente, só se podia fazer na altura, o resto do lanche já estava em grande parte feito de véspera. E isto porque, ainda não te expliquei bem, a Festa era sobretudo o lanche, um lanche muito farto que fazia com que ninguém ficasse com vontade de jantar, mas lá em casa
a festa centrava-se nesse lanche.
No caso da minha mãe ou meu pai não me lembro de haver Bolo de Velas, isso era apenas para mim. Mas outros bolos, havia muitos e variados. Desde a véspera que o cheiro andava no ar: ovos (levavam sempre imensos ovos, e as claras batidas com um garfo...) açúcar, canela, farinha, raspas de limão, chocolate... Que cheirinho bom! Bolos grandes, de fatia, ou pequeninos, que vinham em forminhas de papel, bolinhos secos, e especialidades – trouxas-de-ovos, barrigas de freira, eu nem sei como cabia tanta coisa na mesa e aparadores. Porque também havia os salgados: as sanduíches de queijo, fiambre, foie-gras, e miniaturas de croquetes, rissóis, empadinhas. Era um festim!
Como eu disse, jantar
a sério não havia mas aquele «lanche» nunca mais acabava e os amigos deixavam-se ficar até bem tarde num convívio muito bem disposto, nesse dia famoso.
E o interessante é que os anos do meu pai eram menos de um mês depois e tudo se repetia (menos tantas flores, que aí já a coisa era mais recatada). Também os preparativos vinham de véspera e a alegria entre os amigos e família era grande.
Quanto aos meus anos, o formato era parecido, com a variante de virem os meus amigos, na sua maioria filhos de amigos dos meus pais. Depois de já andar na escola convidava uma ou duas colegas, mas não me recordo que viessem muitas crianças… Aliás, a casa não era assim muito grande, brincávamos no meu quarto ou no quintal, que também era pequeno, de modo que cinco ou seis convidados do meu tamanho já parecia muito. É curioso que não me lembro especialmente da cerimónia das prendas, creio que como ainda se vivia no pós-guerra, o dinheiro não devia ser muito e recebia «coisas úteis» o que não devia ser lá muito interessante.
Mas o bom, era a brincadeira. E o sentir-me a princesa daquele dia, era o MEU dia!»

Clara

10 comentários:

josé palmeiro disse...

Aqui, escreverei mais tarde.
Estou de partida para Lisboa, onde esta tarde vou à Barraca ver a peça sobre emigração que lá está. Direi ainda outras coisas.

Anónimo disse...

Tá com graça, isto. Este aqui é um post à moda da AB!!
lol!!!
Falando a sério, olha que apesar de menos do que outros, este também 'está datado'. Hoje as Festas não são como descreves. E as de crianças não se ficam pelos 5 ou 6 meninos, muitas vezes tem de se alugar um espaço para caber a criançada toda! Esta era uma festa íntima e doce.
Bonito.

Anónimo disse...

Festas dessas já quasi não há.Hoje é mais prova de Champagnes com caviar e foie gras e na outra ponta cervejola e caracois.E as flores "vêm" da Margarida Subtil no primeiro caso ou são de plastico no segundo...Ah!ainda falta o sushi...com aquele arranjo bem minimalista tudo pretos e cinzentos...e os amigos vão-se buscar ao Lux e na falta alugam-se...Clara,Clara ...pois é.AB

Anónimo disse...

Zé Palmeiro boa sorte para a peça.AB

Anónimo disse...

Hoje vinha cá por causa do «Caderno» de Domingo e dou com uma Festa!!!
Mas começando por aqui, que foi o que me fez abrir o Pópulo:
(antes de mais nada, experimentei clicar na foto, e vale a pena - em pequenino não é tão enternecedor, a carinha da menina do laçarote e vestido de organdi, é tão expressiva!!!)
E estou em pleno acordo com a Joaninha e a AB. Hoje não é mesmo nada assim! Esse ar caseiro, o cheirinho aos bolos quentes, as flores perfumadas, até o cheiro da cera(hoje deu-me para os cheiro, mas não há nada mais evocativo) são coisas do passado. O nosso chão é envernizado, as flores compram-se estilizadas em arranjos sofisticados, e os bolos mandam-se fazer à pastelaria...
Olha, Emiéle, fiquei saudosa, bolas!!!

Anónimo disse...

Tambéu eu. Também senti saudades...
Este post realmente está mais 'intimista' mas por vezes já os tens escrito assim!
A menina do laçarote ganha em ser aumentada, sim senhor!

cereja disse...

Sabem que isso do olfacto evocar recordações é quase científico. A verdade é que é um sentido muito arcaico, por algum motivo os animais o têm tão desenvolvido, e 'vai buscar' memórias nossas também antigas...
Foi curioso dois dos meus leitores terem referido isso. Por outro lado, vendo bem, é certo que as festas de hoje são diferentes - tem de ser! Contudo penso também que realmente é uma área onde as diferenças não foram assim tão grandes.

cereja disse...

Esqueci-me de dizer que «a menina do laço» é de época, é claro! Tinha de levar uma imagem a condizer...

Anónimo disse...

Ainda quero deixar um último comentário (estive a ver o «conta-me como foi», realmente série bem feita, quase que na linha de recordações deste tipo de posts)
Olha, gostei mesmo muito destas memórias de hoje. Estou de acordo com quem diz que é mesmo de um tipo diferente de festas. Repara que aqui se insiste na ideia e que era um lanche, um chá. Hoje, mesmo as festas em família são sempre ou jantares ou almoços. E o ambiente não é o que aqui se lê. Vê-se que a autora sente saudades e nós também ficamos....

josé palmeiro disse...

Volto agora. Acabei de ler mais este lindíssimo testemunho. As lembranças do tempo, em que havia tempo, sõ paa mim, decisivas. Havia tempo para tudo e acima de tudo para estarmos uns com os outros. Os quintais onde para além dos frescos legumes, havia as flores. Lembro-me do meu avô Armando e das suas experiências agro-fruticulas e de floricultura, e do prazer que ele tinha em levar às filhas, flores, por ele modificadas. Lembro-me de uma rosas brancas, raiadas de vermelho, fruto de combinações que, só ele sabia fazer.
Não tenho a menor dúvida recordar é , mesmo, viver.