segunda-feira, novembro 26, 2007

Traumas que não passam

Sábado passado, na festa de anos de uma amiga, começo a conversar com um amigo dela que eu não conhecia.
Já nem sei a propósito de quê, falamos de África.
Para mim, África é um foco de saudades. O meu temperamento claustrofóbico ainda recorda maravilhada os grandes espaços, as savanas imensas, os maravilhosos pôr-do-sol, tenho dentro da cabeça uma África romanceada que, mesmo que o seja, não quero apagar…
Quando, sorrindo, ia começar a dizer isto tudo, ele atira-me, secamente: - «Um pesadelo!»

Um choque, e tento entendê-lo.
Passaram mais de 30 anos, mas para o J. aquela palavra só lhe evoca a guerra. Em três pinceladas conta-me algumas coisas, e interrompo-o: chega, pronto, alto, já sei! E sabia, mas fiquei de novo a tremer.

Para temperar a crispação, intervenho então com as minhas recordações e encontramos uma plataforma. Ele sorri e diz que entende. Vivemos em países diferentes, sendo embora o mesmo. Conta-me que ainda hoje, tem um sonho recorrente, um pesadelo diabólico, que consiste em estar de novo a desembarcar lá e enquanto sonha pensa «Outra vez?! Mas eu já cá estive! De novo?!! Como é possível, meu Deus???»

Mas, generoso, acrescenta: Emiéle, tenho a certeza de que se a guerra tivesse sido no Tahiti, Maldivas, Bora-Bora, os locais mais paradisíacos do mundo, os sítios para onde todos gostaríamos de ir se tivéssemos dinheiro, eu sentia exactamente o mesmo. A «tua» África é uma coisa, a minha não tem nada a ver com isso, são imagens que não me abandonam e hão-de morrer comigo. Foi ali como seria noutro local.


São feridas, estas, que nunca cicatrizam!


11 comentários:

josé palmeiro disse...

Para já, os meus parabéns pela foto, transmite, na integra o que sentiste.
Não tenho paciência para esses colonialistas, de pacotilha. Que olhos têm eles? Saudosos do tempo em que julgavam mandar, só por serem brancos, terem todos os privilégios, pela côr da pele, tantas e tantas vezes, com mais incompetência, que outros cidadãos, para o desempenho das funções que lhes eram confiadas mas, eram brancos!. É com isso que essa gente sonha e nunca com o que aconteceu, para bem de todos. Fico indignado com essas actitudes e não tenho paciência para elas.

cereja disse...

Ups!!!
Zé Palmeiro, pela primeira vez contigo, percebo que não conseguir transmitir bem o que queria com este post. Já me aconteceu, naturalmente, com outros leitores, mas contigo foi só hoje.
Não sei como dei a ideia de que o meu interlocutor era um «retornado» zangado com África. De modo nenhum. Aliás, no tal sonho que contou (tudo isto que conto é verdade) se ele 'sonha' que desembarca lá de novo e isso é um pesadelo, é porque desembarca para ir para a guerra.
Este homem vivia um stress post-traumático que nunca conseguiu ultrapassar...
Era essa a minha ideia do post. Sem negar que haja colonialistas saudosos.

Anónimo disse...

Venho já atrás da Emiéle, e também fiquei admirada com a interpretação do Zé. Cá para mim, explicaste-te bem.
E, penso também que quem passou por lá nessas condições, fica com marcas para sempre!

Anónimo disse...

Uma das misérias da guerra é que não acaba com o seu fim.
Ela termina, mas as consequências perduram anos e anos e anos.

Anónimo disse...

Dá muito que pensar...
(Zé, não leves a mal, mas também entendi a outra versão)
Quando ele diz que mesmo um destino paradisíaco, como pensamos hoje, uma delícia para passar férias, ficaria para sempre marcado se se passasse por lá em acção de guerra, deve ser tal e qual.
E, se calhar na segunda guerra mundial, passou-se exactamente por zonas dessas, sem se conseguir ver beleza nenhuma.

Anónimo disse...

Mas como pode passar?...
Fica atenuado, mas está cá, é uma cicatriz. Se lhe tocamos volta a doer.

Anónimo disse...

Não conheço a Àfrica.Ou melhor não conheço a Africa para lá do Sahara .Tive uma vez oportunidade por Angola mas de repente desisti.Há uma meia dúzia de anos.Percebo bem a Emiele como percebo muitos dos que viveram a guerra.Tenho um amigo médico que junto com outro,já falecido e que tinham feito a guerra juntos só falavam dela quando estavam bebedos...Um dia o já falecido,Abilio Mendes saudosissimo, disse uma coisa terrivel:"preferia sair,ir para o mato,do que enfrentar o silencio do aquartelamento quando as colunas saiam"."Matar ou morrer?".perguntei eu."Tudo menos esperar"respondeu ele.AB

Anónimo disse...

Entendo muito bem.
São realmente duas terras. Sinto exactamente isso. Recebi há pouco um FW com fotos lindíssimas do Vietname. Lindas. Mas... o Vietname, na minha cabeça é sobretudo o que vimos nos filmes. E nunca lá estive, o que seria se tivesse vivido essa guerra.

Anónimo disse...

Emiéle e restante companhia, têm toda a razão. Penitencio-me pelo facto de não ter entendido o que li, ou não li, imaginei. Li mal e por isso, tirei conclusões precipitadas e injustas, principalmente para J. a quem peço as minhas desculpas, também. Agora, com uma leitura atenta, verifico o quanto injusto, eu fui. Não voltará a acontecer, e se assim acontecer, conto com a vossa actitude para emendar a mão.

contradicoes disse...

Pode crer cara amiga que o pôr do sol em África é indescritível e eu tive a felicidade de me habituar a ele logo que nasci. Parece-me, face ao mal-entendido aqui reconhecido pelo autor do 1º.comentário que eu, segundo aquele que me deixou também cometi idêntico lapso, embora pela leitura que fiz dos diversos autores de blogs que aconselhavam o link do Abrupto, não o tenha assim entendido.

cereja disse...

Caríssimos: Tive aqui uma série de comentários bastante no mesmo sentido, de modo que só posso responder a todos do mesmo modo - os sentimentos são coisa frágil e delicada, e há memórias que nis marcam de um modo muito duro.
Quanto ao Zé, velho leitor e amigo, a minha primeira ideia foi de que me tinha explicado mal, porque que julgo que sei o que ele pensa sobre este assunto, e pelos vistos foi um mau-entendido. Quanto ao Raul ( saudades desses entardeceres africanos, não é?...) deixei esse comentário do Congeminações por ter sido essa a minha interpretação, mas foi apenas uma interpretação. :D Eu sei bem que sou profundamente falível. Ao contrário do outro «tenho frequentemente dúvidas e engano-me muitas vezes»...