domingo, novembro 18, 2007

O Caderno de Capa Castanha XXII – a operação

«Venho contar hoje, como prometi, uma operação que sofri quando era bem pequenina. Durante o resto da minha vida fui operada várias vezes, Clara, mas nunca senti os horrores dessa primeira vez. A verdade é que eu andava muitas vezes doente e de cama por infecções na garganta. Sem antibióticos, de cada vez que tinha uma infecção dessas era um drama, ficava realmente bastante mal e tudo isso era uma preocupação para os meus pais. O pediatra concluiu que a solução seria tirarem-me as amígdalas, o foco das infecções. E cá vem a tragédia!
Começou por uma coisa comezinha, que foi a primeira análise ao sangue que fiz.
Sabes bem, Clarinha, porque é motivo de brincadeira para quem me conhece, que eu desmaio com muita facilidade. Uma dor forte, uma emoção, a descrição de uma cena chocante e há um clic dentro de mim e «vou-me embora». Desmaio.
Ora tinha eu 3 anos, quando me levam a um sítio sem me explicar lá muito bem ao que ia, sentam-me numa cadeira, e uma senhora de bata branca pega-me na mão, segura-me num dedinho, sinto uma forte dor e vejo uma bolinha de sangue… Adivinhas? Desmaiei! Só me lembro depois de sentir bofetadas, começar a ver mas tudo enevoado, passar de um colo para outro e receber muitos beijinhos quando abri os olhos. Uma estreia na questão dos desmaios!

Dias depois explicaram-me que me iam tirar aquilo que fazia que eu tivesse febre tantas vezes, tinha de ter muito juízo e não me mexer nem espernear quando fizessem isso e depois ia ser muito bom porque durante um dia só ia comer gelados… Que bom, heim?...
Confesso-te que, mesmo com essa promessa dos gelados, estava um tanto apreensiva. Sentia que não me estavam a contar tudo, e se me iam dar um prémio tão bom (nessa altura não se comia gelados com a naturalidade com que acontece hoje) alguma coisa esperavam de mim em troca. Mas, mesmo assim, não esperava a experiência por que passei. Uma manhã, ainda em jejum fui com os meus pais a uma casa muito grande que cheirava de um modo estranho. Era desinfectante, coisa que ainda não sabia reconhecer. Tudo gente estranha, com ar apressado e pouco simpático. Nem uma única cara que eu reconhecesse. Aparece-me uma senhora de bata branca que me dá a mão e, apesar de eu olhar assustada para os meus pais, eles também um tanto pálidos, não me «defendem», apenas me mandam que vá com ela. - «Nós esperamos aqui. Fica descansada que não vamos embora». Segui com a senhora, já assustadíssima, mas o terror aumentou a um limite inclassificável quando ela me entregou a um gigante (nunca tinha visto um homem tão grande na minha vida) vestido com o que me parecia um fato-macaco mas todo cheio de manchas de sangue. Ouvia por ali o choro de várias crianças, que deviam estar ou ir passar pelo mesmo que eu! Esse gigante, pega em mim e num lençol branco e enrola-me completamente nele, como uma múmia, fiquei apenas com a cabeça de fora. Era uma «camisa-de-forças» improvisada, que me deixava braços e pernas sem poderem mexer. Assim, mumificada, senta-me ao seu colo em cima daquelas manchas de sangue do seu fato, e segura-me o corpo com os seus braços fortíssimos. Imagina-te com 3 anos, nesta situação, e talvez calcules o terror completo em que eu estava mergulhada. Aparece depois um outro sujeito também de bata, mas esta sem sangue, que secamente me manda abrir a boca e mal o faço me mete um aparelho de metal para impedir que a feche enquanto avisa «não chores que é pior!» Sabes, Clara, o terror era tanto que realmente ultrapassava a fase do choro.Qual chorar? Eu estava paralisada de medo. Esse sujeito manipula lá uns frascos, borrifa-me a garganta escancarada por causa desse aparelho (seria aquilo uma anestesia?) mete-me na boca o que me pareceu uma colher e sinto simultaneamente uma dor e uma sensação de vómito ao passar-me pela língua uns pedaços de carne ensanguentada que foram sujar mais o tal fato do gigante que me segurava. Desmaiei de novo. Nem me lembro de me tirarem o aparelho nem me desembrulharem do lençol. Recordo o colo da minha mãe, de ir de táxi para casa e o táxi parar para o meu pai ir comprar os famosos gelados da recompensa. Em casa fui para a cama e aí consegui relaxar e sentir que estava em segurança, no meu ninho. Doía-me imenso a garganta, mais do que quando tinha as infecções!... Pensei: «Então, afinal…» E a verdade é que nesse dia não sei o que fizerem aos gelados, mas eu não quis comer nenhum! No dia seguinte, sim senhora. Recebi a visita da minha avó que me trazia uma boneca linda, e lá engoli alguns gelados como refeições, mas não compensou a recordação de horror vivida na véspera que não esqueci até hoje»
Clara

13 comentários:

josé palmeiro disse...

E isto, não foi assim há tanto tempo...
Não sei aquem me dirigir pois a Clara aparece referenciada como a pessoa que está a ouvir contar e depois assina no fim como dona da prosa, mas , tudo bem. Autora, como eu dizia atrás, isto não foi assim há muito tempo. Eu, felismente, nunca tive que ser operado às amigdalas, mas lembro os meus primos e primas que o foram, e era tal qual, um HORROR, a ue se juntava o dito gelado para atenuar as dores e favorecer a cicatrização. Passei por outras coisas também estranhas, como uma panela de água a ferver que me queimou o ombro esquerdo e a metade das costas, do mesmo lado, que tinha uns tratamentos diabólicos, com uma tintura roxa e com umas ligaduras que ao tirar levavam a pele toda. Sei que me curei graças a uma mezinha caseira que depois de colocada no local queimado era sobreposta por folhas de couve galega, enormes, que coziam com o calor libertado. Tempos duros, mas curou e sem as dores que o anterior tratamento produzia. Lindo escrito.

Anónimo disse...

Bem dizia eu há 8 dias que, de facto a nível de saúde é que as coisas evoluiram muito!
Livra!!!!
Parece um filme de terror para menores de 10 anos.

Anónimo disse...

Aqui é acentuado mas sem a força que eu penso que deve ter, a ausência dos pais junto da criança. A «entrevistada da Clara» (realmente o Zé tem razão, ela devia ter um nome que assim nem sabemos bem de quem falamos) diz que os pais ficaram à espera enquanto ela era levada. Esse é um dos aspectos mais sinistros. Uma criança, e pequenina como esta, 3 anos coitadita, devia sentir-se apavorada quanto mais não fosse pela separação forçada dos pais.

Anónimo disse...

(Ontem não consegui passar por cá, mas vejo que há coisas ali em baixo e já lá irei)

Boa descrição. Como o Zé também não passei exactamente por uma cena dessas, mas ainda sou do tempo onde apesar de haver pediatras, qualquer outra especialidade não tinha uma «versão» pediátrica, como há hoje. Temos dentistas de crianças, oftalmologistas de crianças, psiquiatras e neurologistas de crianças, e creio que só não há essas versões em doenças que realmente raramente se podem encontrar abaixo de certa idade.
Nesses anos a que aqui se faz referência, nada disso se passava. A ideia era de que uma criança era apenas um adulto mais pequeno.
Pobres de nós.

Anónimo disse...

Fogo!A Clara não é pressupostamente da minha época mas o terror foi o mesmo com a variante de além de estar amarrada com uma toalha ou lençol, que me tolhia tudo, ainda arranjaram maneira de colocar no meu colo uma bacia para onde as ditas amigdalas iriam pressupostamente cair..(dois pressupostamente...se tivesse um alegadamente ainda dava em pivot de telejornal...Hoje é só desgraças!AB

Anónimo disse...

Esqueci-me de fechar o parentesis.Olha!AB

cereja disse...

Olha Zé Palmeiro, realmente esta história está assinada por muita gente e ficou confusa. Acontece que a «Clara» começou a fazer estas entrevistas a uma sua madrinha, ainda eu escrevia num blog onde colaborei muito pouco. Quando 'abri' o Pópulo achei graça em restaurar essas crónicas e para fazer sequência continuou com a assinatura de Clara, embora editadas por mim, Emiéle.
Já muita gente me tem dito que a pessoa que vai falando devia ter um nome próprio para mais fácil identificação, mas como comecei assim...

cereja disse...

Ah, e com a resposta ao Palmeiro esqueci-me de responder a todos os outros...
Bem, AB, essas tuas memórias ligam bem com as de cima, que a bacia para cuspir as amígdalas segurada pela própria também pode fazer parte desse filme de terror!
Raphael - podes crer que a nível de cuidados com as crianças realmente houve grande evolução. E ainda comparado com outros países, onde as crianças internadas ficam acompanhadas pelos pais, estamos um tanto atrás...

Anónimo disse...

Ligam bem quer-se dizer...O que é que liga com uma barbarie daquelas?AB

Anónimo disse...

Passei mais ou menos pelo mesmo,
Ainda
estou convencido que tinha algum coisa de moda, se elas lá estavam...

Anónimo disse...

Nunca passei por uma dessas, graças a todos os santos!!!
Estou de acordo com a Mary, uma das coisas mais terríveis era separar uma criança tão pequena dos pais. O medo que se devia sentir...

cereja disse...

Olá, FJ! Sempre conseguiste 'entrar' no Pópulo e sem ajuda! Ainda bem.
De resto às vezes também penso isso - se as amígdalas lá estão por algum motivo é, e dantes havia muito a mania de por tudo e por nada irem fóra!
Manias...

cereja disse...

Ligam bem, quer dizer que 'uma barbárie' liga bem com outra barbárie, ora pois!
Aliás diz o FJ, aqui em cima que na altura era «moda», e creio que era algo assim...