sábado, setembro 29, 2007

A verdade

A cada um a sua verdade.
Podemos ter a noção de que assim é, mas é coisa que custa aceitar. O que eu vejo como Verdade, tem uma tal carga de evidência que dificilmente se concebe que outra pessoa perante o mesmo acontecimento «veja» algo diferente. E contudo assim é.
Fui ontem ver um filme excelente, à Cinemateca: RashoMon, ou «As Portas do Inferno», o filme de Akira Kurosawa que em 51 ganhou a 'Palma Ouro' em Veneza e o 'Óscar' de melhor filme estrangeiro. Há mais de 50 anos, e entende-se que assim tenha sido.
Passando por cima da belíssima fotografia e do modo de filmar, vou directa ao argumento. Há uma história que se conta em meia dúzia de palavras: no tempo dos samurais, um deles que viaja com a sua mulher, é encontrado morto e a mulher foi violada por um bandido famoso.
O interesse é que a história contada pelo bandido que foi preso, pela mulher, pelo espírito do morto, e por uma testemunha, mostra 4 versões diferentes da mesma verdade. O bandido tem de defender a sua fama de grande salteador e sedutor, portanto na sua história a violação nem o foi completamente uma vez que ela foi seduzida, o marido foi morto em duelo leal e a pedido da mulher que declarou ficar com 'o melhor'. Já na visão da mulher, ela é uma vítima passiva, toda em choros, abandonada pelo bandido e rejeitada pelo marido que a acha conspurcada e indigna dele. O nobre samurai vem contar (do outro mundo) que a mulher, autêntica víbora, não contente em querer fugir com o salteador ainda o incita a matá-lo, coisa que ele não faz, e é o samurai que se dignamente se suicida. A testemunha, um lenhador, descreve o tal duelo de um modo muito menos heróico, mostrando os dois lutadores com algum medo, e a mulher depois de um prolongado pranto parecendo enlouquecer, rindo enquanto o marido e o bandido lutam e fugindo dos dois.
Ou seja as narrativas vão variando conforme o seu estatuto social, conforme a sua visão da vida.
Qual a verdade? O que é a verdade? Vista pelos olhos de quem?
Essa mensagem de compreensão e relativização é o mais importante deste filme, e o que nos fica da chuva torrencial que cai sobre o templo das Portas do Inferno

5 comentários:

josé palmeiro disse...

Nunca tive oportunidade de visionar esse filmem mas pelo que contas, vou ver se consigo em qualquer video club, adquiri-lo.
É uma verdade o que afirmas sobre a VERDADE, a tua ideia e a outra, a dos outros, cada um com o seu ângulo de visão, dessa mesma verdade, aliá basta ver, quando dum simples toque de automóveis, a multidão de "verdades", que por ali circulam.

Anónimo disse...

É filosofia, é claro. Ou psicologia... Mas seja o que for faz pensar. Como aqui lembra o Palmeiro, quantas vezes as testemunhas, mesmo de boa fé, podem baralhar imenso o apurar de responsabilidades!
Também não vi o filme apesar de ser uma referência. A Cinemateca é excelente, o que se passa é que os filmes só passam uma vez (o que é natural) e nem sempre a horas onde uma pessoa que trabalha possa ir.

Anónimo disse...

Kurosawa foi um cineasta de culto. O certo é que foi através dele que o ocidente descobriu o cinema nipónico. Notem que este filme foi feito 5 anos depois do final da guerra, que deixou o Japão muito mal. A capacidade de regeneração desta gente é maravilhosa.
A tua última frase não é muito feliz. Não é só a mensagem da relativização da Verdade o « que nos fica da chuva torrencial que cai sobre o templo das Portas do Inferno ». Fica muita coisa. Coisas que aliás tu mesma citas mais acima, a visão muito inteligente de como o modo como nascemos e nos colocamos na sociedade pode influenciar a nossa visão dela, e das coisas que lá se passam.
Já vi o filme em cineclube há muito tempo (e creio que passou alguma vez na televisão) mas fiquei com vontade de o voltar a ver.

Anónimo disse...

Eu vi-o realmente na TV, já há bastante tempo.
Belíssimo!
Aliás as fotos a preto e branco são inesquecíveis.

cereja disse...

Ontem não tive ocasião de fazer a «minha ronda» habitual no fim dos comentários, porque saí de Lisboa assim que escrevi isto.
Venho hoje, que também venho a tempo.
Realmente creio que o filme já passou na TV, e o Zé Palmeiro talvez tenha a sorte de ele voltar a passar. Não sei se o encontra em dvd mas é possível.