domingo, setembro 02, 2007

Caderno de Capa Castanha XIII

As casas
Eu sei que quando a gente se lembra das casas onde vivemos em crianças, parecem-nos sempre maiores do que quando depois as visitamos em crescidos. Mas as casas nesse tempo não eram mesmo maiores do que são hoje?
«Olha Clara, é melhor explicar as diferenças, porque as há e grandes - a questão não estava tanto no 'tamanho' das habitações mas no número de divisões e as que pareciam indispensáveis e hoje ‘desapareceram’. É claro que te estou a contar o que se passava na minha família e amigos dos meus pais, ou seja uma classe média.
Eram casas onde para além dos quartos de cama e uma salinha de estar como nas nossas casas de hoje, havia também pelo menos uma sala-de-jantar e uma sala-de-visitas. Isto no mínimo. Em famílias com mais dinheiro, podia haver também um escritório, uma sala de costura e de engomados, um quarto de arrumações, e o quarto da (ou das) criada(s).
Não sei bem como era na província, mas em Lisboa, os prédios formavam quarteirões com as fachadas unidas e cujas traseiras davam para quintais que pertenciam aos inquilinos do rés-do-chão e primeiro andar. O interior desses quarteirões, a zona das traseiras, era íntimo e mais verde – árvores, flores ou legumes e dava para se brincar entre vizinhos. As casas eram construídas ‘em profundidade’ - para a rua davam duas ou três janelas, das melhores salas, também duas ou três janelas para a varanda das traseiras, e pelo meio havia alguns quartos interiores e escuros, ou sem janelas ou com umas janelas pequenas que davam para os saguões. Chamava-se saguão um ‘respiradouro’ do prédio, uma espécie de poço para onde abriam as janelas desses quartos mais interiores. Estás a imaginar?»
-Sim, já tenho visto. Realmente hoje a construção é bem diferente.
«Recordo a casa dos meus avós nas Avenidas Novas. O pé-direito dos quartos era mais alto do que as construções de hoje, portanto as portas eram mais altas e tinham ‘bandeiras’ – uma espécie de janela em cima das portas; e entre as paredes e o tecto havia um friso. Havia 3 quartos com varandas para a rua; o maior era a sala de visitas, cheia de móveis lindos que só se abria para limpar o pó ou quando havia visitas de cerimónia; outro era o escritório do meu avô; outro era uma sala nem sei bem de quê, tinha um piano, devia ter sido o quarto do meu pai em solteiro e a minha avó recebia as amigas íntimas. Havia um corredor comprido, com portas para esses quartos «de saguão» - um quarto de cama dos meus avós, e outro dos meus tios. Para esse corredor dava também a casa-de-banho e um quarto escuro, de arrumações. No final, o corredor fazia um ângulo e havia a sala de estar, a cozinha e a casa de jantar. Junto da cozinha havia um quarto pequenino, onde dormia a criada e onde se passava a ferro.
Não estranhas nada, Clara? Repara que descrevi uma casa com umas oito divisões, e… uma única casa de banho! Esquisito? Não, isso era o normal. A minha avó até me contou que quando alugou essa casa, a minha bisavó a criticou imenso pela «mania das grandezas» por insistir em que queria uma casa onde o quarto de banho tivesse banheira!... Além de que o banho, quando eu era criança, era sempre banho de imersão, não existia ainda o costume do duche.
Outra diferença estava na cozinha. Podia ser, e era muitas vezes, uma divisão grande mas só lá havia fogão, armários e uma boa mesa. Os electrodomésticos mais banais de hoje como o esquentador ou o frigorífico não existiam numa casa dessa época. A roupa era lavada no tanque, fazia-se uma barrela com água a ferver e sabão. Quanto à loiça, para a lavar deitava-se água morna para um alguidar e lembro-me, no fim, de se escaldar a loiça lavada com uma cafeteira de água a ferver. O trabalho doméstico era muito e cansativo.»


Clara

8 comentários:

Anónimo disse...

Isto das casas dava pano para mangas... Fiquei com a ideia de que ias desdobrar este tema. Não sei se me enganei, mas parevceu-me. Realmente opé direito que não tem nada a ver com os caixotes actuais, dava uma amplidão diferente às casas, que realmente tinham as portas muito altas com as «bandeiras» que hoje só se associa às nacionais ou de clubes... :)
E os saguões?! Tinha de ser para 'arejar' as casas mas aquilo era de meter medo às crianças.

cereja disse...

Adivinhaste, Joaninha. Este post ficava muito grande, de modo que para a próxima fica focar outros pontos, tal como as mobílias, por exemplo. E tantos pormenores...

Anónimo disse...

Deste vez ainda se pode comprovar a verdade das recordações que as casas ainda estão de pé, algumas.
Mas tens toda a razão, as actuais que foram recuperadas tiveram uns acrescentos de muito mais casas de banho. Nessa época uma dava para todos. E as criadas tinham umas «amostras» de casa de banho, por vezes na casa de pia da cozinha...

josé palmeiro disse...

Na verdade era mesmo assim. Na província, principalmente nas cidades, também havia casas assim e outras que eram grandes casas agrícolas e que portanto tinham áreas que contemplavam essas necessidades como cavalariças e casões, onde ficavam os carros e os animais, que das herdades, vinham à cidade, pelas mais diversar razões.
Quanto ao saguão, uma pequena referência. O meu filho, habita uma casa, no Porto, como a que descreves e tem o saguão. Este Natal, estavam em obras de conservação e com andaimes lá colocados. Pois bem, essa circunstância foi motivo para uma visita do Pai Natal, encarnado pelo avô, que já devia ter idade para ter juízo, mas que perante tamanha oferta, não conseguiu ficar quieto. E ao contrário do que diz a Joaninha, não foi para meter medo, foi para criar o ambiente propício ao aparecimento das prendas.

Anónimo disse...

Desculpem mas este tema deixou-me novamente cheia de saudades e nostalgia...Realmente as casas antigas que recordo eram bem mais espaçosas, antes da tendência "obrigatória" ou necessária dos prédios com andares ter surgido...Recordo uma outra casa onde passei muitas férias na minha adolescência e onde vivi alguns anos, quando arranjei o meu primeiro emprego. Férias com a avó materna (com a qual percorri várias casas ao longo dos anos), entretando viúva e reformada da vida no campo, que se tinha mudado para a cidade de Faro, depois de ter herdado uma casa com mais de 100 anos dos seus pais. Um longo corredor percorria a casa deste a porta da frente até às traseiras. Tinha tb 8 quartos de cada lado do corredor, uma cozinha interna onde se tomava as refeições, outra externa para cozinhar no quintal, o qual tinha plantas, flores, árvores de fruto (figos, alperces) e um poço seco. O telhado da casa era estilo árabe, um terraço enorme com chaminé típica algarvia, de onde se podia espreitar o tal saguão que dava para a única casa de banho interna. No quintal foi acrescentada uma outra casa de banho, com um quarto anexo, talvez para antigos trabalhadores: jardineiro, cozinheiras, não sei bem ao certo quem…Quase cada divisão tinha alçapões debaixo dos soalhos de madeira...Era interessante percorrer todos os quartos, com mobílias, cortinas de um estilo bem clássico...alguns quartos davam para outros, o que tornava o trajecto ainda mais aventuroso. Infelizmente a avó teve de vendê-la porque os soalhos de madeira começaram a ruír, pintar as altas paredes, com enfeites nos tectos, era demasiado cansativo e fazer obras contínuas muito dispendioso...ficaram as belas recordações dos anos que a família ía passar lá os natais, férias ou outras ocasiões festivas…

Anónimo disse...

As casas...5 de morada permanente,uma após outra nas várias fases da vida...depois outras de familiares das quais destaco uma vendida há pouco por excesso de herdeiros e mingua de amor e que faz parte da muralha fernandina de Èvora a que se chama Torre de Sesibuto.As abobadilhas ,o terraço com muro de gradinha de onde se avista a planicie,os vestigios romanos das lojas de baixo e a disposição dos quartos(não havia um ao mesmo nivel de outro num labirinto de escadinhas )a imensa lareira de portadas eram absolutamente mágicos. As casas da minha gente não tiveram grandes destinos ou melhor contam grandes ironias nas histórias que encerram...Mas lá estão, não digo de pé como as árvores da D.Palmira Bastos mas quási "levantadas do chão" para continuar na metáfora literária .Mas é a de nascimento a que mais fala e mexe comigo embora a tenha deixado cedo.È onde ainda rumo quando a vida pede balanços.Vejo-a de fora porque é hoje um organismo público.Identificando-me pedi um dia para a (re)ver por dentro...e de certeza não volto a faze-lo porque é bom que às memórias não se sobreponham os desastres das chamadas recuperações.Por essas casas nada pardas, para continuar na metáfora literária ,nunca consegui viver em casas pequenas.Preciso de espaço mesmo que não sejam muitas as divisões.AB

Anónimo disse...

Houve frigorifico,algures no tempo,não sei bem quando.Era um General Eletric,enorme, que ainda foi cedido para minha casa quando tive a primeira...( as décadas que aquele frigorifico durou).Mas antes da existencia do dito havia uma coisa curiosa-sobre a bancada a seguir ao lava-loiças havia uma espécie de gancho de cobre,saliente.Ali pendurava-se a pescada "arrepiada"para se conservar...e de noite,a pescada tinha ,assim arranjada, uma luminosidade nada tranquilizadora para uma infancia a quem mostravam um ossinho que existia na cabeça da dita pescada onde em transparencia se podia ver-imagine-se-Nossa Senhora.AB

cereja disse...

Gosto muito destas 'participações' com memórias pessoais! Dá um toque muito enriquecedor a estas entrevistas.
Contudo esta espécie de «Crónica dos Costumes dos anos 40» pretende passar-se mesmo em Lisboa, onde ainda há prédios destes, é claro, mas as novas urbanizações são de um modelo totalmente diferente! E o certo é que agora há T1, ou 2 ou 3, ou mais conforme as posses, mas não é tão normal existirem quartos disto e daquilo, como há 50 anos.
Zé, acho graça o teu filho ter arranjado uma casa dessas! Mas olha que esses saguões, em prédios de quatro e cinco andares muitas vezes, eram bem escuros e podiam realmente fazer algum medo como diz a Joaninha...Claro que não no caso que contas, dessa Pai Natal!
AB, casas como as que referes é uma pena enorme não poderem ser conservadas! Que a família a venda, terá de ser se não a podem manter, mas poderia ser restaurada e com um «fim mais nobre» do que uma repartição pública!