domingo, julho 15, 2007

Um caderno de capa castanha VI

Os divertimentos
« - Há uma coisa que tenho curiosidade em saber como era ‘dantes’: os tempos livres, brincadeiras, divertimentos. Como era na sua infância?

- Nesse aspecto era tudo muito diferente de hoje, Clara, muito. Aí, a distância é enorme. Mas queres saber as distracções das crianças ou as dos adultos?
-
As duas, madrinha, já agora.
- Então falo primeiro das nossas. Nessa altura os adultos não tinham nada a noção, como hoje há quem pense, de que eles deviam ‘entreter’ a criança. Na verdade nós entretínhamo-nos a nós mesmos como podíamos. Deves levar em conta que na época as famílias eram mais numerosas, havia muito menos filhos únicos e portanto o mais natural era brincar-se com irmãos, primos, vizinhos. Decerto também havia filhos únicos, como foi o meu caso, e aí havia que puxar pela imaginação! Estou mesmo a calcular que se um de nós tivesse a ‘triste ideia’ de perguntar à mãe ou pai “o que é que vou fazer agora?” a resposta seria uma tarefa nem sempre do seu agrado - “ajuda-me a dobar esta meada de lã”, ou “leva estas coisas para a arrecadação” ou “vai ao lugar comprar uma alface ” – porque a pergunta seria decerto interpretada como uma oferta de trabalho nunca um pedido para que o adulto descobrisse a que é que nós íamos brincar! Claro está que havia brinquedos, mas nada que se parecesse com a tremenda indústria que existe hoje. Os brinquedos estavam muito organizados – meninas com bonecas e tachinhos, meninos com bolas, comboios, berlindes. Contudo a maioria dos brinquedos fazíamos nós. E era bem divertido! Puxava-se muito pela imaginação! Caixotes, cortinas velhas, latinhas, tudo o que fosse desperdício (e desperdiçava-se pouco!) era aproveitado para se brincar.
E, tal como hoje, brincávamos muito ao faz de conta - «às mães e às filhas», aos «polícias e ladrões», «aos médicos», «às guerras», «às escolas»… E também os jogos colectivos, às escondidas, a linda falua, jogos de roda, a macaca.
Como eu disse, as brincadeiras estavam muito divididas por sexos. As meninas também se mexiam muito mas em brincadeiras de meninas - saltar à corda, por exemplo, ou correr na ‘apanhada’, ou às escondidas e brincávamos muito aos jantarinhos, ou a vestir bonecas com vestidos feitos por nós, ou «às casinhas». Os rapazes, juntavam caricas e faziam corridas de tampinhas dando-lhes piparotes certeiros ao longo das pedras dos passeios, brincavam às guerras com espadas de madeira ou de lata porque não havia plásticos, jogavam ao berlinde e, claro, à bola.
Como eu vivia em Lisboa, nas ‘avenidas novas’, não me deixavam brincar na rua como muitos meninos da minha idade, mas havia sempre pequenos jardins perto, e aí encontrava outras crianças. Era só chegar ao pé delas e perguntar: «Também posso brincar?» Pronto! Mais uma para a roda, ou para saltar a pé coxinho. E sabes? Adorava também não fazer nada e ficar apenas à janela a observar o que se passava na rua. A rua era muito interessante, pelo menos para mim. Sonhava. Ai, Clarinha, fizeste-me tantas saudades.»
Clara

9 comentários:

Anónimo disse...

Mais um texto «recuperado» e que vai para a minha pasta pessoal dos teus «Era uma vez». Os campeonatos de caricas, tampinhas onde se colavam no interior as fotos dos jogadores que saíam nas colecções de cromos, eram fenomenais! Eu era MUITA BOM!!!!
E como tens razão, mulher! Se passava pela cabeça de alguém ir perguntar aos pais «o que é que vou fazer agora» como os nossos filhos fazem… nem os pais se sentia minimamente culpados de não ir brincar com os filhos. Era o que mais faltava!!!
A vida deu muitas voltas.

saltapocinhas disse...

quando leio estas histórias imagino sempre que a Clainha és tu :()
Estive a ler as brincadeiras e as minhas eram mais as dos rapazes! E ainda falta aí caçar grilos e andar aos ninhos! (eu só queria ver os ninhos, não lhes mexia!)Maas para quem vivia em lisboa devia ser dificil ter estas actividades...

cereja disse...

Olá King e Saltapocinhas!
Como dizes a «vida deu muitas voltas» e não sei se melhores para os miúdos. Saltapocinhas, pelo que sei, era bem mais fácil uma menina entrar em jogos de rapazes do que estes em jogos de meninas - uma «maria-rapaz» era muito melhor aceite do que um «mariquinhas». Mas dependia da 'força' que a família exercia e do ambiente mais ou menos conservador onde era educado.
Claro que se esta senhora vivia nas «Avenidas Novas» em Lisboa, não a estou a ver a ir aos ninhos :))))
pelo que ela diz, nem sequer ir brincar para a rua, fóra de casa só em jardins do bairro.

Anónimo disse...

Hoje chego muito tarde para o meu costume, e para espanto não encontro o José Palmeiro e encontro outros comentadores...
Emiéle, só posso voltar a repetir o que penso destes teus posts - é uma obra que é um serviço público! Se a TV decidir fazer um «Conta-me como foi» vinte anos antes (ao contrário do Alexandre Dumas...) devia nomear-te consultora!
A menina que descobriste para ilustrar é um amor!

josé palmeiro disse...

Tens razão Joaninha, aos fins de semana, dado que a autora, resolve, e bem, não cumprir os horários habituais, retira-me da cena, mas como sempre, aqui estou, fora de horas, a dar o meu contributo, agora muito mais facilitada, porque já está tudo dito.
No meu Alentejo, e na minha família, essa família alargada, tão bem descrita, a figura central era o Avô, depois os tios que eram sete, isto tudo da parte materna, os mais próximos, que do lado paterno eram os dois avós , uma tia e três primos, mas esses estavam longe, a cerca de trinta quilómetros, o que representava, uma imensidão. Mas voltemos à família proximal, e para lá dos tios, todos a viver na mesma localidade, menos um, havia mais dez primos "direitos". As brincadeiras eram em conjunto, exceptuando os três mais velhos, que faziam grande diferença.
Jogávamos ao pião, ao botão, à pateira e a todas aquelas outras brincadeiras, já referidas. No ambiente rural, como o nosso, os ninhos, os grilos, os cães e gatos, os cavalos, as ovelhas e os porcos, eram o nosso quotidiano, tal como apanhar uma lagarto, quando o calor começava, pôr-lhe um cordel à volta do pescoço e passeá-lo, como qualquer outro animal de trela. As guerras, eram outra, das brincadeiras preferidas. Lembro-me de uma batalha, em que um, correligionário tinha feito, na oficina do pai, um canhão, aproveitando um tubo largo, onde eram colocados dois elásticos, das câmaras de ar das bicicletas, num dos topos, elásticos esses que catapultavam, uma pedra,a longa distância. Pois bem, quando do assalto, as tropas inimigas, tomaram a nossa posição e levaram o canhão. Foi uma derrota memorável, o Castelo tinha derrotado o Bairro Operário. Mais tarde, houve mais lutas, tantas, que dali surgiram homens e mulheres que hoje reflectem o presente, tal como eu o tento fazer.

cereja disse...

A diferença maior entre as brincadeiras de há 50 anos e as actuais era que havia menos «coisas feitas» e penso que isso forçava a imaginação e criatividade das crianças. Obviamente que como não havia TV também se passava muito mais tempo brincando numna relação directa, criança a criança. Hoje em dia talvez haja brinquedos mais 'pedagógicos', planeados para estimularem certas competências infantis e tornarem as crianças mais «maduras» mais cedo. Será bom? Não sei... É a actualidade que temos.

Anónimo disse...

este texto é delicioso!

do que me lembro, brincava aos legos, lia alguma coisa, às bonecas (eu e a minha irmã fazíamos-lhe roupas, ela tinha muito jeito, as roupinhas ficavam um mimo, já eu nunca tive jeito nenhum para costuras, borbados, coitadas das minhas bonecas! sempre mal arranjadinhas!...).
depois, na escola (que não nos deixavam sair muito), era a corda, a macaca, a apanhada e o ringue -

isto dos pais... realmente, duvido que fizesse parte das preocupações dos meus, mas faz muito parte das nossas cá em casa... é só sentimentos de culpa...lol...é que nem sempre há tempo, disposição, etc... e penso que isto tem a ver com várias coisas: uma geração de pais que tenta dar aos seus filhos o que não recebeu ou, pelo menos, fazer diferente ou, então, que acredita estar a ser mais moderno, mais actualizado, porque segue o que lê e vê; hoje em dia, há talvez mais conversas sobre educação entre pais, mais revistas da especialidade, séries de tv com determinados modelos de família, as crianças habituam-se a exigir mais,...

Inês disse...

Lindíssimo post!

O meu primo talhava barcos de cortiça. Como os outros moços pequenos. Eram pedaços de cortiça que abundavam na doca. Punha-lhe mastros e velas e ficávamos tempos a olhar como flutuavam e seguiam na corrente...

Anónimo disse...

Brinquedos de que me lembre especialmente,três.A Mona,uma boneca de corpo de trapos e cabeça de 2 faces,uma negra e outra loira,com grandes olhos em matéria transparente onde rodavam 2 botões,pretos na face preta,azuis na face loira.O cabelo era de lã e a origem creio que sueca.Um carro eléctrico,levado de Lisboa,motivo de susto pq.entendi que se era eléctrico era para ligar à corrente e lá fui meter o chamado "trolley"numa tomada,e um avião de pedais fruto duma enorme birra na Kermesse de Paris(era ao lado do Avenida Palace)porque a ideia era darem-me uma boneca.Usei sempre o avião sem as asas(eram de tirar e por)pq.depois já em Lisboa não cabia no corredor.Jogos...Mais ou menos sempre de risco e nem eram bem jogos...na casa grande havia poços,pelo menos 3.Um na chamada "casa das torneiras" um compartimento a seguir à cozinha onde se lavava,passava e onde havia outro objecto do desejo.Um armário de 1ºs socorros(lá iremos).Outro poço no escritório do meu avô.Esse tinha um gradeamento cravado a toda a superficie .O gozo era subir para essa espécie de tampa aos quadrados e contar aos primos mais velhos(como duvidar da voz da infancia?)o que se via lá em baixo,ou seja o diabo,a caminha do diabo,o prato onde o diabo comia e por aí fora...Armário de primeiros socorros:suponho que devia conter o trivial,tinturas,algodão essas coisas.Mas havia outra coisa:guardavam-se lá umas pastilhas cor de rosa que se diluiam em água numa bacia e onde se molhavam escovas para limpar fatos de homem.Soube mais tarde que se tratava de pastilhas de sublimado corrosivo,seja lá isso o que fôr,mas havia uma interdicção absoluta de sequer chegar ao armário.O gozo estava em ,durante uma distracção de quem limpava os fatos, apanhar uma das pastilhas e depois....lamber, de leve ,mesmo muito de leve e desafiar os outros"Vês como não mata?". A rua.Fascinante a rua,mas quási tudo se passava dentro de casa e se em Èvora havia jardim em Lisboa havia quintal.A rua de Evora.Calor terrivel,hora da sesta.E lá em cima começava a ouvir-se o rodado de uma carroça,troc,troc,(só o Bergman muito mais tarde remeteria de novo para isso)e lá vinha a Má Bicho.A Má Bicho(nome de familia,havia tb a Bicha Fera)era almocreve.Vendia tudo e tinha pregão.Aterrava-me e eu ia esconder-me atrás de um móvel,onde descobri pendurada num prego uma carteirinha com cartas(o que eu daria para as ter agora).E ela lá descia com a carroça,troc,troc no empedrado ao sol e gritando"Mel,águamel,potes de barro,palitos.Mel,águamel,potes de barro,palitos".Chegada ao fim da rua, sem que ninguém se tivesse interessado pela mercadoria rematava com uma ironia vingativa(digo eu agora):"Quem tem não precisa".Acabemos aqui,mas que se organizassem os jogos ou as brincadeiras das crianças ou que adultos se disposessem a brincar com as ditas?Ná!era mais -traga aí a menina à sobremesa...Só o avô era diferente.Mas isso é outra história.Ab