Um caderno de capa Castanha IV
Olha, eu sei que eras pequenina mas ainda te consegues lembrar do final da guerra? Sempre tive curiosidade em saber isso.
«Se me lembro…! Essa é uma das imagens da minha infância que recordo com mais nitidez. Nesse dia senti-me confundida por perceber como tudo aquilo era importante para as pessoas que me rodeavam, pessoas que eram os meus modelos. Se os meus pais estavam naquele estado de excitação era porque, com certeza, se passava algo de muito sério! Era complicado, sentia-me também nervosa, um pouco assustada, arrastada por uma onda gigante de alegria colectiva.
Mas deixa-me voltar a esse tempo. Eu tinha cinco anos. A nossa vida do dia a dia era muito espartilhada. Para além do “espartilho” que era a própria existência do salazarismo com a pressão permanente sobre a liberdade de pensamento e de expressão, e esse um morno medo latente, havia ainda o “espartilho” da guerra. Há quem hoje imagine que como Portugal pela sua neutralidade não entrou nela directamente, não foi afectado. Nada de mais errado! Fomos sim e muito. A vida do dia a dia só podia ser compreendida pela existência dessa guerra. Lembro-me bem de como tudo tinha de ser poupado, da força opressora do racionamento. Havia senhas para se comprar quase tudo o que era necessário, cada família tinha mais ou menos senhas conforme o seu tamanho. E havia os produtos do mercado negro, um mercado clandestino mas a que todos recorriam. Coisas preciosas chegavam-nos da província quando as nossas raízes iam até lá. De vez em quando chegava a surpresa duma dúzia de ovos, uma garrafa de azeite. Era uma festa! Custa-nos imaginar hoje, quando entramos no enorme casarão de um supermercado com prateleiras inteiras cheias de produtos, o valor que podia ter uma garrafinha de azeite que aparecia clandestinamente... Sabes que nessa altura havia muito menos lojas, mesmo na proporção. Havia mercearias, drogarias, lugares de hortaliça, capelistas, mas nem imaginas a variedade de produtos que nos vinham trazer à porta. Era um mercado ambulante. O pão e o leite, em primeiro lugar. Lembro-me do padeiro, logo de madrugada, bater à porta com o enorme cesto comprido cheio de pão ainda quente acabado de sair do forno, a leiteira com bilhas de lata vinha de porta em porta, e media o leite que se precisava directamente para o nosso fervedor. Depois, havia as varinas que traziam peixe também à nossa porta, e lembro-me de uma carrocinha puxada por um burro, onde um vendedor trazia os legumes. Tinha um pregão muito modulado cujas palavras nunca cheguei a entender. Mas isso não interessava porque, ao ouvir-se aquela cantiga, sabíamos que era o homem das hortaliças. Quase nada se vendia empacotado. Lembro-me de ir com a senha para a manteiga no bolso, até à mercearia e pedir 50 ou 100 gramas que o merceeiro atirava com uma grande colher de pau de um alguidar para cima da balança. Ou a farinha, ou o açúcar, ou o feijão, que ele despejava para uns cartuchos de papel pardo pesando-se a quantidade que se pedia. Depois assentava a compra num livro e pagava-se no fim do mês. Toda a gente fazia assim. Era o “cartão de crédito” da altura baseado na confiança. Quando te digo que se poupava tudo, era tudo. Havia uma caixinha, na chaminé, para os fósforos queimados. Um fósforo, mesmo depois de usado, ia servir para acender outro lume aproveitando um que já estivesse aceso. Uma panela com um furo mandava-se consertar, deitar ali um pingo de solda. Na loiça que se partia, punha-se “gatos”, uns agrafes que mantinham os pedaços juntos. E o rescaldo da guerra surgia também noutros campos. Olha as legiões de refugiados. Faziam moda, imagina. O cabelo cortado “à refugiada”, era muito mais curto porque não havia tempo para grandes penteados. Assim como elas não andavam já de chapéu como as portuguesas, tapavam simplesmente a cabeça com lenços grandes. E inventavam soluções muito imaginativas: lembro-me bem de, em casa de uns amigos dos meus pais, ter visto uma senhora fugida da guerra que tinha feito a caminha do seu bebé com uma gaveta que retirou de uma cómoda... E foi também nessa altura que surgiu a moda das alcofas para os bebés. Se não havia berço, havia alcofa. Era um mundo novo mais simples, mais prático. Mas o final da guerra foi o delírio. Foi isso que me perguntaste? Nunca tinha visto gente crescida a saltar de alegria! Na minha rua, de um momento para o outro viram-se as janelas cheias de colchas penduradas (é um hábito de festa que quase desapareceu, pelo menos nas cidades parece-me…) e as pessoas aos abraços e a rir. Gritavam de uma janela para a outra “Acabou a guerra!!!” Hoje, eu entendo que aquela alegria tão grande era porque se acreditava que ia ser a grande barrela: Hitler, Mussolini, Franco e Salazar. Tudo parecia possível. Os aliados tinham vencido e as ideologias que eles tinham combatido iam desaparecer. Foi um momento de sonho e de grande felicidade. Lembro-me sim. Lembro-me muito bem do fim da guerra. Como havia de esquecer?»
Clara
9 comentários:
please visit blog, thank you
Estava aqui a «passear» quando entraram estes dois posts «de domingo». Fiquei admirado da rapaidez com que entrou este ('spam'?) comentário acima. Sempre me intrigou para que é que se mandam estas coisas...
Quanto a esta recordação, apesar de a ter lido no passado, adorei relê-la. É mesmo um post para se ler a um domingo onde há tempo para saborear melhor as coisas.
Eu não sou desse tempo, apesar de já não estar na primeira juventude, e ouvi algumas dessas coisas pela boca dos meus pais. E imagino que o dia da confirmação do fim da guerra tenha sido algo de comovente.
Tal como o King, também ainda 'estava por aqui' o post.
Que bom teres recomeçado esta série.
E que linda a foto da época. A menina do laçarote, contemporânea decerto da tua entrevistada.
Soube-me muito bem.
Gulp! Gralha: queria dizer «ainda 'estava por aqui' quando entrou o post.»
Nem sei como saltei tantas palavras.
Não sei que dizer, perante tanta humanidade, tanto amor, que este escrito transporta. Eu, nasci, no pós-guerra, foi mesmo logo a seguir, e lembro-me bem de ouvir, os mais velhos, contar as histórias que aqui vêem. O meu pai, trabalhava num armazém de merceerias, e contava-me o drama das senhas e a dificuldade que havia para obter os alimentos, em especial, os mais desfavorecidos. De resto a forma de "mercar", no Alentejo, do meu tempo, mantinha-se exactamente, como desvreves, uma quarta de açúcar, dez tostões de café, são expressões que guardo na memória. Fazem.nos falta estes escritos!
Olá!
Esta «série» está ainda a ser 'revisitada', estou a publicar textos que já sairam no Pópulo-weblog. Depois destes vou continuar porque tenho mais material já escrito.
Tess, tens razão, procurei uma foto contemporânea destas memórias.
Muito obrigada pelas tuas palavras tão carinhosas, Zé Palmeiro. Mas tenho para aqui outras entrevistas que vão focar muitos aspectos do dia a dia desses tempos.
Só hoje cá vim, mas deste texto só me resta repetir o que já disseram: que bom existirem estes testemunhos!
Era...grandes cestos no chão da cozinha,na primeira camada laranjas e na segunda azeite,enchidos,queijo e fascinio dos fascinios umas latas redondas,grandes,vermelhas e douradas com a marca "Zarco".Manteiga ao que parece da Madeira,com o próprio Zarco de mangas tufadas,um luxo.Na marquise os vidros foscados com uma técnica dita de"boneca"mantiveram durante anos cruzes na diagonal do papel gomado que se punha para evitar que os estilhaços atingissem alguém em caso de bombardeamento.E a galena.Uma espécie de telefonia feita em casa com uma resistencia(?)onde corria uma especie de pequena alavanca metálica para apanhar postos de rádio...e maravilha das maravilhas o mapa,o mapa onde o avô marcava o avanço dos Aliados e onde os paises eram representados por animais: oleão inglês,o grande urso branco russo,mapa esse motivo de querela em partilhas e desaparecido sabe-se lá por onde...AB
AB, desculpa, mas este «comentário» vou passá-lo também a post.
Continua magnificamente o texto que está em cima...
No domingo que vem, para além das recordações que já estão escritas, vou deixar estas tuas em continuação deste post.
Para que a memória não se perca!
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