sábado, julho 21, 2007

Recordações (comentário-post)

Mais uma vez, entre os vários comentários que o post Divertimentos, brincadeiras recebeu, muitos foram excelentes, mas um deles, foi tão completo que não posso deixar de o "passar a post" de novo. É que seria uma pena se passasse desapercebido.
É este:
Brinquedos de que me lembre especialmente, três.

A Mona, uma boneca de corpo de trapos e cabeça de 2 faces, uma negra e outra loira, com grandes olhos em matéria transparente onde rodavam 2 botões, pretos na face preta, azuis na face loira. O cabelo era de lã e a origem creio que sueca. Um carro eléctrico, levado de Lisboa, motivo de susto porque entendi que se era eléctrico era para ligar à corrente e lá fui meter o chamado "trolley" numa tomada, e um avião de pedais fruto duma enorme birra na Kermesse de Paris (era ao lado do Avenida Palace) porque a ideia era darem-me uma boneca. Usei sempre o avião sem as asas (eram de tirar e por) porque, depois já em Lisboa, não cabia no corredor.
Jogos...Mais ou menos sempre de risco e nem eram bem jogos. Na casa grande havia poços, pelo menos 3. Um, na chamada "casa das torneiras", um compartimento a seguir à cozinha onde se lavava, passava e onde havia outro objecto do desejo - Um armário de 1ºs socorros (lá iremos). Outro poço no escritório do meu avô. Esse tinha um gradeamento cravado a toda a superfície. O gozo era subir para essa espécie de tampa aos quadrados e contar aos primos mais velhos (como duvidar da voz da infância?) o que se via lá em baixo, ou seja o diabo, a caminha do diabo, o prato onde o diabo comia e por aí fora… Armário de primeiros socorros: suponho que devia conter o trivial, tinturas, algodão, essas coisas. Mas havia outra coisa: guardavam-se lá umas pastilhas cor de rosa que se diluíam em água numa bacia e onde se molhavam escovas para limpar fatos de homem. Soube mais tarde que se tratava de pastilhas de sublimado corrosivo, seja lá isso o que fôr, mas havia uma interdição absoluta de sequer chegar ao armário. O gozo estava em, durante uma distracção de quem limpava os fatos, apanhar uma das pastilhas e depois....lamber, de leve, mesmo muito de leve e desafiar os outros "Vês como não mata?". A rua. Fascinante a rua, mas quase tudo se passava dentro de casa e, se em Évora havia jardim, em Lisboa havia quintal. A rua de Évora. Calor terrível, hora da sesta. E lá em cima começava a ouvir-se o rodado de uma carroça, troc, troc, (só o Bergman muito mais tarde remeteria de novo para isso) e lá vinha a Má Bicho. A Má Bicho (nome de família, havia também a Bicha Fera) era almocreve. Vendia tudo e tinha pregão. Aterrava-me e eu ia esconder-me atrás de um móvel, onde descobri pendurada num prego uma carteirinha com cartas (o que eu daria para as ter agora).E ela lá descia com a carroça, troc, troc no empedrado ao sol e gritando: "Mel, água-mel, potes de barro, palitos. Mel, água-mel, potes de barro, palitos". Chegada ao fim da rua, sem que ninguém se tivesse interessado pela mercadoria rematava com uma ironia vingativa (digo eu agora):"Quem tem não precisa".
Acabemos aqui, mas que se organizassem os jogos ou as brincadeiras das crianças ou que adultos se dispusessem a brincar com as ditas? Ná! Era mais - traga aí a menina à sobremesa...
Só o avô era diferente.

Mas isso é outra história.
AB

7 comentários:

Anónimo disse...

Estes «acrescentos» da AB às tuas crónicas são sensacionais!
Mas pelo que me lembro ainda tens muitas (algumas, pelo menos) aí na gaveta. Espero que amanhã venha outra...
Mas este ambiente esta magnificamente descrito. Eu tinha lido em comentário e tens todo o meu apoio em o passar a 'honras' de post!

Anónimo disse...

Este post merecia muitos mais comentários do que o que disse a Joaninha.
É um fresco (fresco??? não como dizer melhor, mas o termo parece-me pretencioso) de uma época, excelente.
E apesar de o ter lido em comentário, merece este realce.

Anónimo disse...

Muito bom.
Tal como o outro escrito desta «autora».

josé palmeiro disse...

Excelente AB.
Depois, a referência a Évora, deixou-me uma réstea de saudades do, meu/nosso, Alentejo.
Como diz a Gui, é mesmo um fresco, sem pretenciosismos, já se vê.

Anónimo disse...

o que acontece é que a Clara ajuda a pôr ordem em certas memórias.obrigada à Clara e a vocês tb.AB

Anónimo disse...

Estes «retoques», com pormenores tão interessantes e tão de época, às recordações que a Clara vai recolhendo nas suas entrevistas, são magníficos.
E a menina da foto, ali à janela, imagina-se bem que é a autora, de laçarote...
:)

cereja disse...

Raphael, a menina do laçarote encontrei-a na net, não deve ser a AB. mas também me pareceu que devia dar ares...
Zé Palmeiro, realmente esta Alentejo daquelas tardes quentes (da tua «sesta») fazem muitas saudades.