Um caderno de capa castanha III
A Escola
E a Clara continuou a registar aquilo que lhe estava a ser contado «Quanto ao meu início na leitura e escrita, é interessante pelo contraste com os tempos de hoje. Começando pelos materiais. Só tive direito a usar uma caneta de tinta permanente para fazer o exame da 4ª classe, e isso foi um luxo. Aprendíamos a escrever com as canetas que hoje vês nos filmes antigos – um aparo de metal que se enfiava na ponta de um suporte e depois se molhava no tinteiro que as carteiras tinham a meio. Podes imaginar a dificuldade e os acidentes… Se o aparo trouxesse tinta a menos não escrevia, se trouxesse tinta a mais caía um borrão! E o desgosto quando acontecia estar a linha já toda escrita e distraidamente passar um braço antes da tinta estar seca e ficar tudo esborratado e ilegível! Estás a ver que a dificuldade não era apenas escrever sem erros e com letra bonita, era a própria técnica que atrapalhava. A leitura, para mim foi muito fácil.
O método foi a Cartilha Maternal de João de Deus, e avancei muito depressa na leitura. Sentia um profundo prazer em conseguir ler. Andei tão depressa que a professora, um dia considerou que eu tinha dificuldades na escrita, (pudera, com aquele sistema!) e me ameaçou: não me deixava avançar na leitura até eu escrever com perfeição. Como pedagogia há bem melhor! Lembro-me que me esforcei loucamente por fazer uma letra bonita para poder continuar a aprender a ler usei uns “cadernos de duas linhas” que ajudavam a controlar a letra. Consegui! Na aritmética, para além da tabuada, decorada em coro e numa cantilena, faziam-se umas contas enormes e sem nenhum interesse. Pelo menos na minha escola, eram essas contas gigantes e, mais para diante, uns problemas estranhos a respeito de “torneiras a deitar água” e “comboios em velocidades diferentes”. O ensino era à base da memória, muito treinada na época. A minha memória não era grande coisa, mesmo em miúda. Quero dizer, eu adorava decorar poesias, por exemplo, ou textos que achasse bonitos. Esse tipo de coisas, fixava-as sem custo, logo à primeira. Mas todos os afluentes dos rios de Portugal e colónias, ou as estações de caminho de ferro da linha de Bragança…era uma dificuldade. O conteúdo dos textos dos livros de leitura, como já calculas, era o mais conservador possível. Os valores eram Deus, Pátria e Família encarados de um modo que hoje chamaríamos “fundamentalista”. Incutia-se um respeito cego pelos superiores, e compaixão pelos pobrezinhos que ‘deviam saber qual era o seu lugar’. O Pai era o chefe absoluto da família, com todos os direitos sobre a mulher e filhos. Como nada disso era praticado na minha família, calculas que desde cedo me tornei crítica e contestatária.» Clara
6 comentários:
Estava a ler a comentar os posts ali debaixo, quando entraram de revoada estes 3!!!
Eu repito-me mas não me rala: gosto imenso destes teus «Era uma vez...»
Que interessante é comparar este ensino com o actual! Aqui a Saltapocinhas é que deve achar graça (ela já é de uma época posterior, mas deve achar graça)
Vou dizer de minha justiça, este caderno de 2capa castanha", É UM DESFILAR DE MEMÓRIAS, que me deixa feliz. Sabes, ainda tenho a minha cartilha maternal! Quanto ao resto, lembro-me de um colega, que, detestando a escola, bebeu a tinta, do tal tinteiro, de modo a ter que ser levado ao hospital, para ver o que tinha acontecido e quais a s consequências. De resto, a descrição é correcta e feita com um amor, muito grande.
Capa castanha ou verde? "bons tempos".
!!! Já não estudei atraves da Cartilha Maternal, mas tenho uma cópia do livro que foi de minha mãe. Só que nisto de capas, vejo que há para todos os gostos.José Palmeiro tem a de capa castanha, fj de capa verde, ora a cor da minha cartilha é branca. Teriam sido as várias edições? Mas também tinha de saber os rios e os afluentes das ex-colónias assim como os caminhos de ferro álém das produções. E os exames? já a partir da 3ª classe? Eu fiz em 1957 aos 9 anos de idde e o da 4ª classe em 1958 com 10 anos de idade .
Joaninha - 'Brigada, minha fiel comentadora! A Saltapocinhas é com certeza mais nova do que a pessoa que aqui fala, mas este tipo de ensino ainda perdurou bastante tempo.
Zé - A minha ideia é essa mesmo, deixar aqui em «papel virtual» umas memórias tão antigas mas ditas com emoção e como dizes com amor. Ainda bem que o sentiste. Essa do teu colega, bolas que isso já é o que modernamente se chamaria 'fobia escolar'!!!!
FJ - Alto! O Livro é que é de Capa Verde, e foi o avô que lho deu. Aqui é um Caderno de Capa Castanha onde se escreveram umas memórias já bem velhinhas. :)
Amiga 'anónima !!!'- Como eu disse agora ao FJ, há para aqui confusão:
1º temos o Caderno de Capa Castanha, título geral destas crónicas encaixadas na categoria «Era uma vez...»
2º Temos a verdadeira Cartilha Maternal que penso que teria realmente uma capa branca, pelo menos algumas edições assim é.
3º Temos o Livro de Capa Verde, que é referido num texto da famosa Cartilha...
Que grande confusão de cores....
Felizmente só apanhei o "aparo" no meu 1º ano, e depois do 25 de Abril, acho que nem me lembro bem de me sentar na "carteira"...havia sempre actividades de lazer, cultura, desporto.....
Em 1975 já utilizávamos a esferográfca (só para as Provas), mas lembro-me bem dos meus irmãos mais velhos se "verem e desejarem" com as canetas de tita permanente, com os borrões de tinta na "Pasta", na roupa.....ou era porque a ponta tinha secado......
Era difícil ser bom aluno, para além da "inteligência" e da memória, a destreza manual era nuito exigente! Lembro-me de lutar, durante todo o ensino primário, por ter uma "letra bonita", que issso era uma exigência.....
Enfim, bons tempos porque já passaram!
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