Um Caderno de Capa Castanha II
Numa outra tarde, a dona do Caderno de Capa Castanha contou-me:
“Olha, Clara, tenho imensa pena de não me conseguir lembrar dos primeiros anos da minha infância. Muitas coisas que imagino serem recordações se calhar são apenas histórias que ouvi contar e fui aceitando como sendo verdadeiras lembranças. Mas consigo lembrar-me de alguns momentos com tanta nitidez que, esses, decerto foram mesmo reais.
A primeira vez que fui à escola, por exemplo.
Nessa altura havia um único Jardim-Escola. As crianças costumavam ficar em casa até começarem os estudos. Mesmo no caso de as mães trabalharem, como quase todas as famílias tinham uma empregada ficávamos com ela. Isso, até mesmo quem tinha pouco dinheiro. E, se assim não fosse, havia uma avó, uma madrinha, uma tia com quem nós ficávamos durante o dia. No meu caso vivia connosco uma tia velha e uma empregada com quem fiquei até aos 3 anos.
Mas, como era filha única, os meus pais consideraram que era importante a convivência com outros meninos e, avançados para a época, foram levar-me ao tal Jardim-Escola. Era na ‘Pedro Alvares Cabral’, junto ao Jardim da Estrela. A intenção era boa, mas para mim esse dia foi um pesadelo! A viver 3 anos num ninho, senti-me projectada no ar sem saber como se abriam as asas. E, pelos padrões de hoje, a escola era muito rigorosa – entrava-se e pronto! Nada de os pais ficarem connosco uma manhã, ou a entrada ser gradual. Chegada à porta, cumprimentava-se uma senhora que eu nunca tinha visto e… adeus, até logo!
Nesta escola pretendia-se, firmemente, não haver distinções de classe e assim vestiam-nos um bibe de quadradinhos – azuis, amarelos ou rosa conforme a sala – e calçavam-nos umas sapatilhas de sola de corda. Lá distinções não havia mas, de início, senti que perdia era a identidade. Não era eu, era uma menina, igualzinha às outras todas. E todos eram desconhecidos para mim. A sensação, Clara, foi de verdadeiro pânico! Sentia-me diluída, fundida no conjunto, sem presença real. Esse dia foi inesquecível. Recordo-me de ouvir alguém dizer: “Coitadinha, esta faz pena, nem se ouve chorar só se lhe vêem as lágrimas cara abaixo”. E era certo, porque apesar de muito pequena eu tinha o meu orgulho e queria mostrar-me forte, nem queria que reparassem nas lágrimas que não conseguia segurar.
Depois habituei-me, claro está. Saía de casa, bem cedo, pela mão da tia-avó que morava connosco, e íamos até ao eléctrico. Era uma meia hora a chegar ao Rato, e a seguir era só subir a avenida. Dessa parte sempre gostei e acho que os meninos de hoje, que vão de carro até à porta da escola, perdem qualquer coisa. Porque o convívio no carro eléctrico era divertido: as pessoas metiam-se comigo e puxavam-me o laço, entravam ardinas a vender jornais, havia miúdos que se penduravam das portas com o revisor a ralhar com eles, todos os dias havia motivos de interesse, era a vida perto de nós.
O revisor que vendia os bilhetes vinha de banco em banco, com 3 macinhos conforme a distância, bilhete de 5 tostões, de 7 tostões ou de 10 tostões. Com um alicate fazia um furinho no bilhete, marcando onde se tinha entrado. Muitas vezes brincava comigo, fingindo que me fazia um furo na orelha com esse alicate. Era uma relação muito mais humanizada do que a de hoje, a qualidade do tempo era diferente.
E é isso que gostava de acentuar. O tempo desenrolava-se à minha frente longo, longo, os dias, semanas, meses, pareciam não ter fim. Quando me diziam “para a semana que vem” parecia-me uma eternidade. Se queres saber, o que acho que mais mudou da minha infância para agora foi a qualidade do tempo. Houve algo que se transformou em profundidade. Nem melhor nem pior, mas o tempo hoje é diferente. Acredita.» Clara
“Olha, Clara, tenho imensa pena de não me conseguir lembrar dos primeiros anos da minha infância. Muitas coisas que imagino serem recordações se calhar são apenas histórias que ouvi contar e fui aceitando como sendo verdadeiras lembranças. Mas consigo lembrar-me de alguns momentos com tanta nitidez que, esses, decerto foram mesmo reais.
A primeira vez que fui à escola, por exemplo.
Nessa altura havia um único Jardim-Escola. As crianças costumavam ficar em casa até começarem os estudos. Mesmo no caso de as mães trabalharem, como quase todas as famílias tinham uma empregada ficávamos com ela. Isso, até mesmo quem tinha pouco dinheiro. E, se assim não fosse, havia uma avó, uma madrinha, uma tia com quem nós ficávamos durante o dia. No meu caso vivia connosco uma tia velha e uma empregada com quem fiquei até aos 3 anos.
Mas, como era filha única, os meus pais consideraram que era importante a convivência com outros meninos e, avançados para a época, foram levar-me ao tal Jardim-Escola. Era na ‘Pedro Alvares Cabral’, junto ao Jardim da Estrela. A intenção era boa, mas para mim esse dia foi um pesadelo! A viver 3 anos num ninho, senti-me projectada no ar sem saber como se abriam as asas. E, pelos padrões de hoje, a escola era muito rigorosa – entrava-se e pronto! Nada de os pais ficarem connosco uma manhã, ou a entrada ser gradual. Chegada à porta, cumprimentava-se uma senhora que eu nunca tinha visto e… adeus, até logo!
Nesta escola pretendia-se, firmemente, não haver distinções de classe e assim vestiam-nos um bibe de quadradinhos – azuis, amarelos ou rosa conforme a sala – e calçavam-nos umas sapatilhas de sola de corda. Lá distinções não havia mas, de início, senti que perdia era a identidade. Não era eu, era uma menina, igualzinha às outras todas. E todos eram desconhecidos para mim. A sensação, Clara, foi de verdadeiro pânico! Sentia-me diluída, fundida no conjunto, sem presença real. Esse dia foi inesquecível. Recordo-me de ouvir alguém dizer: “Coitadinha, esta faz pena, nem se ouve chorar só se lhe vêem as lágrimas cara abaixo”. E era certo, porque apesar de muito pequena eu tinha o meu orgulho e queria mostrar-me forte, nem queria que reparassem nas lágrimas que não conseguia segurar.
Depois habituei-me, claro está. Saía de casa, bem cedo, pela mão da tia-avó que morava connosco, e íamos até ao eléctrico. Era uma meia hora a chegar ao Rato, e a seguir era só subir a avenida. Dessa parte sempre gostei e acho que os meninos de hoje, que vão de carro até à porta da escola, perdem qualquer coisa. Porque o convívio no carro eléctrico era divertido: as pessoas metiam-se comigo e puxavam-me o laço, entravam ardinas a vender jornais, havia miúdos que se penduravam das portas com o revisor a ralhar com eles, todos os dias havia motivos de interesse, era a vida perto de nós.
O revisor que vendia os bilhetes vinha de banco em banco, com 3 macinhos conforme a distância, bilhete de 5 tostões, de 7 tostões ou de 10 tostões. Com um alicate fazia um furinho no bilhete, marcando onde se tinha entrado. Muitas vezes brincava comigo, fingindo que me fazia um furo na orelha com esse alicate. Era uma relação muito mais humanizada do que a de hoje, a qualidade do tempo era diferente.
E é isso que gostava de acentuar. O tempo desenrolava-se à minha frente longo, longo, os dias, semanas, meses, pareciam não ter fim. Quando me diziam “para a semana que vem” parecia-me uma eternidade. Se queres saber, o que acho que mais mudou da minha infância para agora foi a qualidade do tempo. Houve algo que se transformou em profundidade. Nem melhor nem pior, mas o tempo hoje é diferente. Acredita.» Clara
8 comentários:
Mais uma página, do "caderno de capa castanha", para nos adoçar o Domingo. Descrição magnífica, do quotidiano urbano, de há uns anos. A ida para o "João de Deus", ali à Estrela, a "bata", uniforme, que igualava aos de dentro, mas diferenciava dos outros, a grande maioria, das escolas públicas, e por aí fora. Era assim o dia a dia, e estão extraordináriamente, bem descritos.
Zé Palmeiro, a vida que vou relatando aqui nestas entrevistas creio serem ainda um pouco antes do teu tempo, mas mais ou menos 10 anos não terá assim tanta importância e o que eu gosto é de imaginar é «o clima» que se vivia. Como ela diz numa frase mais para o fim, «que mais mudou da minha infância para agora foi a qualidade do tempo. Houve algo que se transformou em profundidade» e sinto isso. Mesmo as crianças hoje «não têm tempo»!!!!
Queres ver uma coisa?
Entendo perfeitamente o que dizes, mas apesar da diferença de + ou - dez anos, eu que nasci e me criei, fora de Lisboa, mas fora mesmo, cerca de duzentos quilómetros, apesar dos dez anos, não era assim tão diferente. Nem a Espanha ali tão perto, me dava outra prepectiva, pois, saída de guerra, como estava, encontrava-se ainda mais distante, do desenvolvimento e da modernidade. Sim as crianças, de todos os tempos, "nunca têm tempo", melhor, o tempo deveria ser, sempre delas! Já agora, também NOSSO, pois seríamos certamente, muito melhores!
Percebo muito bem o que dizes e também sinto o mesmo!
Também é o que mais sinto, quando penso na infância: o tempo era taaaaanto!
As férias enormes, a praia nunca mais acabava!
E eu sempre ansiosa por fazer mais um aninho! (burra, burra, burra!!)
Em relação ao post anterior, compreendo muito bem do que falas! A história do "não ser racista" está tão presente em nós, que acabamos por o ser, mas ao contrário!
Há crianças ciganas que lá na escola fazem coisas que jamais admitiriamos a um não cigano!!
Não fazem maldades, são todos muito queridos, mas faltam sem avisar - e faltam muito - e ninguém tem coragem de lhes cortar a refeição. Porque eles comem na cantina, de borla porque são pobres e as ordens que temos é de cortar a refeição a quem faltar sem pré-aviso (as crianças que pagam as refeições, se faltarem sem avisar não são reembolsadas).
E nós não temos coragem de fazer isso!
(Desculpa alguma confusão de ideias mas estou com pressa!!)
Eu sou dos que tem acompanhado esta «série», e que fico bem satisfeito por a ver de novo toda junta. Espero muito interessado os outros «episódios» para não ter de ir ler ao antigo Pópulo.
Este é giríssimo. O primeiro Jardim Infantil! Hoje há por todo o lado, mas também seria impossível o contrário, pela entrada da mulher no mundo do trabalho.
É giro, não é, Saltapocinhas, essa coisa do tempo...?! Como é que dantes parecia tanto?! As férias grandes nunca mais acabavam :)
Raphael - mas olha que realmente o Jardim-Escola João de Deus era o que havia e era um projecto revolucionário. Porque naquela altura, havia tantas mulheres em casa, que mesmo que a mãe trabalhasse fóra, podia ficar com outra pesoa da família.
Sabes que eu sou uma fã dos teus «Era uma vez...» Da outra vez comecei a coleccionar e depois nem sei o que lhes fiz.
Desta vez vou recomeçar, e ter cuidado onde os guardo.
Que bem visto também que está o 'passeio' de carro electrico. Esse bilhete é de 8 tostões mas olha que também tenho uma ideia vaga de serem de 7 tostões. Mas a passoa que fala e eu devemos estar enganados, se esse é de 8?!
Eu tinha um tio-avô que fazia colecção de capicuas (!?) Quando o bilhete que lhe saía era capicua, guardava-o. Tinha emensos!!!
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