sábado, junho 16, 2007

Receio ou «discriminação positiva»?

Não sei como começou.
Estava eu muito sossegada a folhear um jornal quando oiço uma forte discussão na rua. Tão forte e com tantas vozes ao mesmo tempo, que chegou com nitidez ao meu terceiro andar.
Logo de seguida a voz do meu filho grita-me de uma janela: Oh mãe, vem cá ver isto!
Vou espreitar, é claro. Nada de cusquice, simples espírito científico, ‘investigadora social’ estão a ver?
Bem, como já disse não faço a menor ideia de como teria começado, mas o que se via era uma carrinha branca, parada no meio da rua, 4 piscas ligados, e rodeada do que parecia ser uma multidão. Pensando bem não seria uma multidão. Aí uns 30? 20? 15? enfim bastantes ciganos e sobretudo ciganas que se encarregavam da parte sonora. Não tinha sido choque porque à vista não havia mais nenhum carro, nem atropelamento, que estavam todos de boa saúde pelo menos avaliando quanto à força dos pulmões e à violência dos gestos. Alguma coisa teria causado aquela discussão mas o quê não deu para saber.
O interessante é que, na posição em que estava, a carrinha impedia o trânsito. Os carros mais pequenos ainda a conseguiam contornar, fazendo uma gincana e deixando margem de um centímetro de cada lado. Mas um carro maior não passava.
Ora a questão prolongava-se. E a minha rua tem algum movimento. Quando vi chegar o primeiro camião da Coca-Cola animei-me – aquilo ia dar gozo. Até porque do outro lado aproximava-se uma camioneta de obras também volumosa e mais dois carros logo atrás. Ouviu-se uma buzina e logo uma das ciganas explicou-lhe alto e bom som onde deviam meter a buzina… A «feira» continuava animadíssima e, dos «gentios», ninguém piava.
E perante o meu pasmo, o camião da Coca-Cola começa a fazer marcha-atrás e lá vai procurar outro caminho, assim como o camião das obras que procede a manobra idêntica.
Enquanto reinou aquele arraial, os carros que ali chegavam, metiam o escape entre as rodas, e procuravam uma alternativa para não incomodar os senhores da guerra rua.
Quando se cansaram do barulho, aquilo dispersou em pequenos grupos. Deviam ir consolados. A carrinha branca foi-se embora serenamente, e tudo regressou à calma.
Se o grupo que ali estava não fosse de ciganos, vocês acreditam que os camionistas teriam recuado com tanta mansidão? Oh, oh...!

Por mim gosto de tratar todos os seres humanos como iguais. Iguais. Mas esta cena caricata, igual a muitas outras, não é isso que mostra. Discriminação positiva ou… miúfa?

15 comentários:

Anónimo disse...

Emiéle, não resisto a este teu post! Deixei por aqui ao longo do tempo que te tenho lido 2 ou 3 comentários, porque não tenho lá muito jeito para escrever. Quase sempre estou de acordo com o que escreves e vou sorrindo e passando adiante.
Mas achei esta história formidável. Magnífica! Está muito bem escrita, com imenso humor (aquela do «escape entre as rodas» teve imensa graça) e ainda por cima é exactamente assim. Não tem nada a ver com racismo ou não racismo, o certo é que as pessoas intimidam-se ao ver um grupo de ciganos mesmo que não sejam assim tantos, como o caso que tu descreves. E essa «discriminação positiva» acaba por ser um paternalismo encapotado, que não vejo aonde leva…

josé palmeiro disse...

Bem caracterizada a situação e como o comentador anterior diz, com muito humor e ao mesmo tempo com toda a verdade e as interrogações que tal nos coloca. É mesmo paternalismo encapotado e medo, muito medo. Senão observemos, nem um polícia, durante todo esse tempo! Calculem agora se fossem outros os protagonistas, pretos, brancos ou amarelos, estudantes, professores ou qualquer outra classe que reivindicasse uma qualquer injustiça? Que teria acontecido?
Bem, mas eu sei o que aconteceu, e tu, é que, de janela, não te apercebeste. Era um grupo de campanha do Carmona, em plena acção de rua, com vista à sua reeleição, devidamente autorizados pelo Governo Civil.
Um bom fim de semana, e já agora, sem chuva, que já chega, a que tem caído.

Anónimo disse...

(já qui vi o sem-nick, mais do que as duas ou três vezes que ele diz!)

Emiéle, tiveste realmente muita graça. Para além dessa do «escape entre as rodas» que o sem-nick sublinhou, a história está mesmo engraçada. Por acaso também penso que os ciganos duma cidade como Lisboa são bem diferentes dos que encontramos em zonas rurais, por exemplo. Eu vejo por aqui comunidades ciganas, que vivem com um espavento - as mulheres cobertas de joias de ouro, os homens também e com carros de topo de gama - que não me cheira nada bem... Não é a vender tee-shits de contrafacção que se ganha assim!
E, é claro que assustam as pessoas. Pudera, não.

Anónimo disse...

:))

Anónimo disse...

Extremamente interessante e bem escrito. Sem-nick vê muito bem.

Mar disse...

É miúfa, mesmo. E eles que não são parvos, são péritos em fomentá-la, essa estratégia da gritaria é meso para ter esse efeito, explicado pelos próprios (tenho a "sorte" de trabalhar directamente com 50 famílias ciganas). ;-)))

Mar disse...

é "mesmo".

Anónimo disse...

O chegar tarde tem um grande inconveniente: é que quem veio antes já disse tudo o que a gente queria dizer!

Também me irrita esse paternalismo que muitas vezes temos. Uma coisa é o respeito por quem é diferente, o que só nos fica bem, outra aceitarmos tudo com essa «desculpa» o que já não fica tão bem. E eu, tal como a Gui, também vejo muita malta cigana com proventos muuuito estranhos. Muitas vezes vão à minha frente na fila do supermercado com o carrnho cheio de produtos caríssimos, whisky de 10 anos, chocolates suiços, queijos franceses, ao chegar à caixa sai um monte de notas mais alto que o meu salário... Huuummm...
Mas a polícia que intervem muito despachada com negros por exemplo, aqui já se modera que andam por ali facas e coisas desagradáveis.

cereja disse...

Tchiii... tanto comentário. Afinal o meu arraial ao pé da porta interessou-vos!
Obrigada por apareceres, sem-nick, e com palavras tão simpáticas. Mas se passas por cá basta deixares um :) como fez o SR para marcares presença. E é muito bom saber que houve quem passasse por cá!
Gui e Joaninha, realmentehoje trocaram de posições! estás a ver Joaninha como é boa ideia vires cedinho...? Falas antes dos outros !
Mar, minha amiga, se é como aqui dizes conheces o que a casa gasta muito melhor do que nós! Já me tinha ocorrido que aquela gritaria fizesse parte do expectáculo. lol
Zé, Joaninha e os outros que focaram esse ponto - exactamente pelo facto de se fossem negros ou brancos desqualificados a polícia intervir com outra energia é que me leva a pensar que... cof...cof...
Gui e Joaninha, também tenho essa convicção de que como em tudo há ciganos, e ... ciganos! Também eu tenho visto essas ciganas com um poder de compra assombroso que me deixa a pensar coisas feias.

Anónimo disse...

Cadeias, correntes, e outros agrilhoamentos afins... poderia ser mau prenúncio, falta de liberdade ou maus tratos. Não. Simples "cadeia" de tarefas ou respostas. Espécie de "Favores em Cadeia", por sinal filme que se mantêm entre os meus favoritos, e cuja "cadeia" se fosse trazida ao nosso mundo real, poderia fazer alguma coisa ... de bom ! Que é o que este Mundo está demasiado necessitado. Coisas boas !
Mas, esta também é uma coisa boa. Pequenina pela sua simplicidade, mas que se estende pela aldeia global. Um de cinco... leitores, e de quê... é a pergunta.
Volto á coisa boa, para acrescentar que o é, sobretudo por me ser endereçada. Eu que que tenho uma presença infima nestas actividades, e acredito passar quase despercebido. Por aquilo que faço e por encontrar tantas "coisas boas" que me superam - e me entusiasmam. Proposta da "Emiele" ... é mesmo coisa boa !!
A resposta, além de tardia, é um "pouco" ambígua - leio e não leio; mas não tem a acompanhar algum assobio...
Leio : "Portugal Terra de Mistérios" de Paulo Alexandre Loução ; "Elogio do Silêncio" de Marc de Smedt ; "O Vinho em Portugal" de João Paulo Martins (ed: CTT com estampilhas de colecção) ; "Música de Praia" de Pat Conroy ; "A Bíblia de Barro" Júlia Navarro ; "As coisas da alma" de João de Melo ; "O Sentido Religioso" de Luigi Giussani ; e mais este ... e aquele... ou seja não leio, porque é sempre aos fragmentos, tudo quase ao mesmo tempo. E depois : os Ofícios Circulados-DGCI; os Orçamentos do Estado; as interpretações legislativas; os códigos de IRC, IRS e IVA; os consultórios e fóruns técnicos...!!
Desta forma, não leio ... os livros ! Não dou seguimento até ao fim.
Há !! Existe um, numa prateleira aqui mesmo ao lado, junto ás chatas papeladas fiscais e de contabilidade.
"O Livro das Conversões" - texto de Clara Pinto Correia e fotografia de João Francisco Vilhena. Um livro para começar a ler á 2ª feira até Domingo, segundo as instruções de utilização. O prefácio é de Frei Bento Domingues. Dou como sugestão... e recomendo que não esqueça o dia da semana para o início. Não sei o que faço à Segunda Feira de manhã para me esquecer ! Pode ser que com isto, na próxima eu comece a lê-lo.

Um abraço, e obrigado.

Por responder ficaram algumas coisas. Sobre as literaturas de evasão, as séries de vício - por exemplo aquela em que o Doutor troca o Serviço pelo Martini... se calhar para se livrar daqueles virus e bactérias que entram pelas salas de trabalho! A poupança do Estado, ao entregar trabalhos "suspeitos" a gente "insuspeita". A segurança que até pode ser um pequeno problema, sendo mesmo uma situação normal dentro da anormalidade ! Os "jaquinzinhos" que são destruidos, quando podiam mesmo alimentar gente com fome. Mesmo fome !!! Porque ela existe, aqui ! Não é apenas noutro mundo. É neste, e cada vez mais em toda a parte.
Mas grave, mesmo grave - não, não é a comichão... é ter de comer as sardinhas e o caldo verde nos plásticos ! e o vinho também ! De volta as tigelas e os copos de barro, já !! E muitos guardanapos, porque eu gosto é de comer as sardinhas à mão. Não me importo com o cheiro ! No fim, para isso, há muitas formas de limpeza com sucesso!

Luis Manuel


Peço desculpa, vai ficar o comentário como anónimo, pois não consigo recordar.me da password. É o que faz o pouco uso ! Puxa, nem deu anónimo !!! O outro também não ! Lá vou tentar recuperar a passw

Anónimo disse...

Bom... com a opção intermédia : Outro, até aparece o nome.
Ainda bem.

cereja disse...

Ah, Luis Manuel do Heliasta, sempre cá chegou!!!
(Enfim, a «cadeia» não seria bem, bem, assim; a ideia era que escrevesse também no Heliasta e passasse a bola a outros tantos, mas enfim....)
Fico bem satisfeita com esta visita. Tem um modo inconfundível de focar aquilo que eu escrevo, que me deixa desvanecida!...
Quanto às leituras, afinal pertence ao meu grupo («e mais este ... e aquele... ou seja não leio, porque é sempre aos fragmentos, tudo quase ao mesmo tempo»). Tal e qual como eu! A dificuldade foi arranjar uma série de 5, definidos, porque vou lendo vários ao mesmo tempo. E pelos vistos os meus são também tão variados como os seus.
Obrigada pela participação.

Leonidas disse...

olá a todos!
Adorei, mais uma vez, o teu texto Emiele, está escrito de uma forma "jornalísitica"/"humorística",...muito bem!
Eu como chego sempre tarde, e a más horas, tenho também que contrariar (brincando, claro, pra quem não me conhece...) mas devo acrescentar um ponto, é que os comportamentos dos "grupos" e os seus "códigos" divergem um pouco a nível nacional, é a minha percepção. Todos devem ter em memória o tipo de comportamentos violentos em caso de disputas domésticas, rixas de bares, etc, etc, aqui no Minho, eu pelo menos fico "pasma". É que resolve-se tudo de "modo radical"! Eu que já vivi em Lisboa, Porto e Braga, tenho bem a consciência de que as regras de comportamento, tipo procedimentos legais em situações de tráfego (por exemplo, variam de "terra" pra ""terra"...
Quando vim pra Braga os meus amigos não queriam acreditar, é como um outro lugar com outras regras de trânsito! Piscas, não se usam, "toda a gente sabe que fulano mora em tal sitio, e se vai por aquela faixa, é óbvio que vai pra casa", etc, etc, ....(a sério...é a única explicação possível)...
Mas grave, grave, mesmo, é utilizar a buzina, nem que seja com a maior das boas intenções, tipo alertar pra uma situação de perigo, é que aqui no Minho é "levado a mal", não raro (sei de vários casos) acaba em tiroteio.....(vem tb nos jornais)!
Engraçado que apesar de morar na provìncia (como quem diz, é a 3ª maior cidade do país) habito uma zona "nova" altamente cosmopolita,a maioria das pessoas que cá vivem não são de cá, estrangeiros, portugueses, emigrantes, legais e ilegais, mas cria-se aqui "no bairro" um ambiente interessante, não se pode atribuir este ou aquele tipo de comportamento a uns ou outros, porque, na realidae como é um bairro relativamente pequeno dão-se todos uns com os outros, jogam à Sueca, etc,e até corre tudo ás mil maravilhas, como a diferença é maior, o respeito também parte de um patamar mais elevado, julgo eu.
Gosto mesmo, e a minha filha quando tinha idade de ir "brincar lá pra baixo" fez o mesmo, de ver os miudos todos ciganos, brasileiros, portugueses, de Leste, de África, ...todos a conviver e a brincar.....gosto de ouvir "Flamenco" a altos berros a sair pela janela da vizinha, sábado de manhã....à tarde, música brasileira romântica....é a alma do bairro....(desde que não exagerem!)
Ou seja, no Minho, nas suas zonas mais típicas se houver paragem de trânsito das duas uma: ou há sangue e todos param para ver, ou vai haver tiroteio e o melhor é dar a volta.
Com isto, não querendo desculpar os ciganos ou não ciganos, aqui o que vale são os códigos de "honra" indexados à cultura.
E pronto, se vierem a Braga, já sabem, não se enervem, tentem prever o comportamento do condutor da frente e, principalmente, não buzinem!
Beijocas
Boas noite!

cereja disse...

Leónidas, que maravilhoso comentário. Já não é a primeira vez que tenho pensado em roubar um comentário teu e passá-lo a post, tão interessantes são. No meu blog da weblog às vezes fiz isso (assinando com o nick de que o escreveu, é claro!), mas como tinha os emails dos comentadores, podia pedir-lhes, aqui não sei como fazer.
Há séculos que não vou a Braga. Sei que está enorme. E não fazia a menor ideia disso da busina - olha que moderar o exagero do seu uso não é nada mau...
E claro que tens razão, os comportamentos variam em função do meio onde se vive, e os dos ciganos também, e se são crianças e convivem com muitas outras raças a coisa dilui-se.

Leonidas disse...

Obrigada pelo elogio! Vou tentar chegar ao "meu perfil" e introduzir o endereço.......hei-de lá chegar....!
De qualquer maneira, para além desse efeito "diluição" de que falas, há por aqui muito "grunho", com alguns estudos, boas famílias, e quando alguém lhes toca naquele ponto íntimo da honra (que ninguém sabe bem o que é) armam logo um 31! Pessoalmente nunca tive qualquer problema com os ciganos daqui, já com algumas almas é preciso ter cuidado, virar costas e esperar que não dê pancadaria (mesmo estando essa alma a infringir a lei)....! O que acontece é que geralmente os ciganos, como outros grupos desfavorecidos e conotados com certos comportmentos, próprios dessas vivências sociais, muitas vezes ficam com a fama toda....e já que a têm, usufruem dela, pois não, pouco mais têm que lhes possa dar algum "sentido de previlégio"!
Beijocas