domingo, abril 13, 2008

Poesia

É muito vulgar e frequente «acordarmos com uma música na cabeça», e andar o dia todo com ela. Penso que já aconteceu a todos. A mim também, é claro.
Mas eu não sou muito musical. :(
Gosto muito de música, sem dúvida, mas nem sei se será a minha arte preferida, vou mais para as artes plásticas, talvez.
Bom, mas o que queria contar é que me acontece, a mim, muitas vezes «acordar com um poema na cabeça». Sei-os de cor, saem-me sem qualquer esforço, como se estivessem a pairar na minha memória e só esperassem uma ocasião para saírem do limbo…
E hoje acordei com o

Poema em Linha Recta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,


Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.


Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,


Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?


Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.


Álvaro de Campos

(Desculpem, é pesado, mas tenho de me livrar dele!)


10 comentários:

Anónimo disse...

Pois olha que este é um dos poemas de que me lembro mais.Não o sei todo de cor como tu (talvez se tivesse musica,mas quem poderia cantá-lo?),mas vem-me, em excertos, muitas vezes em momentos de desgosto profundo quanto mais constato que a História é "contada"sempre pelo lado dos que se julgam vencedores.(Eu escrevi "contada "e não "feita").Ontem por exemplo,qd.cheguei aqui podia bem ter-me ocorrido,mas não.E hoje deparo com ele.As tais superioridades morais sejam vindas de onde forem e etc etc etc...grande conversa,amiga e é disso que às vezes tenho saudades,dessa forma adolescente de sentar no chão e dizer o que nos vem à cabeça e à alma, já agora com a vantagem de já termos sido adultos.(ao contrário do que diz o Brel mas a comparação era com os velhos).AB

Anónimo disse...

Já agora,obrigada ao Palmeiro pelo acolhimento.AB

Anónimo disse...

Bolas, Emiéle, hoje é Domingo!!!!

(pronto, tinhas de te livrar dele; agora ficamos nós a remoê-lo)

Anónimo disse...

Quem é que não o sente, de vez em quando?
E quando nos impingem conselhos que ninguém pediu!!!!
Realmente tantas vezes em que parece que são todos excelentes, sabem tudo, nunca se enganam, ou quando se enganam é para aprenderem um boa lição, etc, etc.
«Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?»

Pois é...

cereja disse...

AB - realmente sei-o quase todo de cor, mas falha uma coisa ou outra. Muitas vezes, estes poemas «oiço-os» noutras vozes (Villaret, ou Mário Viegas, por exemplo) o que dá mais colorido - será a tal música que desejas - mas este «oiço-o» na voz do meu pai que o dizia muitas vezes.

E tinha tanta razão. (E às vezes tenho umas saudades horríveis dele.)

Anónimo disse...

Este é um excelente modo de te «livrares» dele!
Que bem que soube, voltar a lê-lo.
(O Álvaro de Campos é para mim o Pessoa principal!)

Anónimo disse...

Agora ao ler o teu comentário lembrei-me do Brassens e do verso em que ele dizia que se conhecia Verlaine ou François Villon "avant d'être gravé dans des microsillons".Este poema é "In-cantável"-acho eu.E dizê-lo também não é para todos e por acaso a versão do Villaret nem me agrada muito.Agora voz de pai...sempre deve ser outra coisa.AB

josé palmeiro disse...

É bom ter amigos! E ter amigos assim, ainda é melhor!
Não consigo dizer mais nada, sinto-me esmagado, com a carga.
Estou comovido, que é uma forma de estar BEM!

cereja disse...

Também acho que o Villaret, sendo excelente em muitos poemas, este não é muito feliz, tem de se usar um tom duro que não é bem o dele.

AB, o meu pai quando o dizia, era de facto com uma amargura que alguns 'acidentes' da sua vida justificavam. E contudo era um tipo tão 'vertical' e corajoso. Se calhar por isso mesmo «todos os seus conhecidos tinham sido campeões em tudo»
Pois...

cereja disse...

Tens razão Zé, muitas vezes a comoção é mesmo um modo de se estar Bem.

E resultou. Já não 'oiço' o poema. :D