domingo, abril 27, 2008

O Diário da Ana



Sábado, 27 de Abril
O primeiro sábado em Liberdade!

Se ontem tenho de reconhecer que não trabalhei nada, hoje então…
Quem é capaz de se concentrar em papeis e temas teóricos, quando a vida de repente deu uma volta tão grande? O que era importante há dois ou três dias, hoje deixou de ter a menor importância.

É muito emocionante encontrar tanta gente que não se via há anos: os nossos amigos que tinham ido para fora – França, Inglaterra, Suiça, Bélgica… eu sei lá, toda a Europa estava cheia de quem se tinha recusado combater numa guerra com que não concordava – e ainda outros que tinham desaparecido nas sombras da clandestinidade, para combater o regime na ilegalidade. Todos estes estão a regressar ao nosso convívio, desde ontem que não paramos de receber telefonemas para nos encontrarmos com este e com aquele ou aquela – já tenho chorado não sei quantas vezes.

É que ainda não nos habituamos…

Como quem acorda de um sonho, mas nos primeiros minutos não reconhece bem onde acabou o sonho (ou pesadelo) e começa a vida real. Sinto-me muito assim. Claro que os jornais - que têm esgotado as tiragens! - e as imagens da TV, ajudam a ver que tudo isto é real, mas…

Hoje à tarde, ia com o João pela Avenida da Liberdade e vi um grupo que ia gritando «O povo unido jamais será vencido» e «O povo está com o MFA». Juntámo-nos ao grupo que era de uma dezenas de pessoas, completamente desconhecidas para nós, mas isso o que interessa? Já não há informadores, não há Pide!!! podemos falar à vontade com toda a gente. A meio da Avenida o grupo era já mais de cem, e quando chegámos ao Marquês já nem os conseguia contar. Esta espontaneidade sabe tão bem. Todos nos ríamos, e havia uns mais organizados, talvez essa malta que tinha voltado do estrangeiro, que disse para darmos os braços uns aos outros e o grupo pareceu logo mais organizado, além de nos sentirmos unidos.

Uns rapazes e raparigas tinham uns spays de tinta e iam escrevendo nas paredes Liberdade, Viva o MFA, Fascismo nunca mais, frases desse tipo. Nunca tinha visto e estava a achá-los muito valentes quando consciencializei que agora se pode dizer isso tudo. Mas há medos que custam a desaparecer.

À noite fomos a casa dos «Franciscos» apareceu um maralhal enorme de malta amiga, e imensos dos que tinham já regressado. Falou-se muitíssimo dos que estão agora em África, como é que terão sido informados disto, e o que devem estar a sentir. Se nós estamos como estamos, então eles…! Havia algum receio de que a hierarquia do exército, a que está nas colónias, não aceitasse este golpe, mas pelo que se vê isto foi muito bem feito, e não houve problemas graves. Talvez o Spínola tivesse sido uma jogada importante por mais que nos custasse.
Enfim, este sonho continua!

7 comentários:

Anónimo disse...

Sabes, Emiéle, o que escrevi ali em baixo no teu outro post, é o que devia repetir aqui. Se me perguntarem o que recordo desses dias, é tudo uma grande confusão!
A emoção era enorme, o entu
siasmo mas ainda uns resquícios de medo.
Para mim as núvens desapareceram completamente só no primeiro de Maio.

Anónimo disse...

(mas que é feito da AB?)
Realmente estes dias tens menos visitas, Emiéle, mas a gente não falta - e ainda deve passar por cá o amigo Zé :D
Foram de facto dias indescritíveis e por isso muito difícil de falar neles. A memória qui confunde tudo.
Recordo essas primeiras «manifestações», sem qualquer ordem, e os rapazes creio eu que do MRPP - se é que já os havia - cheios de energia a escreverem nas paredes pela primeira vez.

Na altura parecia formidável, e hoje já nem se pode ver...

josé palmeiro disse...

Enquanto por aqui, as coisas eram como descreves, nas colónias a guerra prosseguia...

Anónimo disse...

Post notavel, em especial a primeira frase..
Realmente são dias confusos, otaveldificeis de individualizar até ao 1º d Maio, exceto talvez ea chegada dos notaveis.
Joaninha toca um ponto que tambem senti:algum medo. Quando tive de ir
buscar o zg á sua clandestinidade, fui e vim á noite sem encontrar um único carro Senti um isolamento que e fez medo E á chegada a lisboa fomos mandados parar por militares, sobre os quais ainda tinha resquícios de dúvidas.

Anónimo disse...

Já vi que continuaste a escrever mesmo de férias...
Mas antes de ir ler o que postaste hoje, venho cá abaixo apreciar a continuação deste «Diário».
Muito bom o «comentário« do FJ!
Porque ecentua o que tu aqui também dizes e muita gente da que nasceu depois dessa data, não imagina.
É que não foi como desligar um interruptor e pronto: a democracia segue imediatamente! Houve de facto uns dias de resquício de medo. Ainda havia dúvidas e o que o FJ diz é impresionantemente verdadeiro - se ele foi buscar um amigo que estava na clandistinidade, deve ter sentido um frio no estômago!...
Custou-nos a acreditar!

Anónimo disse...

Venho aqui de novo, porque vi que havia muitos mais comentários depois do meu.
Tal como o King também estranho o silêncio da AB, a gente habituou-se a ela...
O testemunho do Palmeiro é também interessante. O que se pensava lá nas COLÓNIAS..?
Mas, como a Mary, apreciei muito o que disse o FJ. Até comovente pela sinceridade.

cereja disse...

King - vocês têm perguntado pela AB e eu vou responder porque sei: não está cá! Foi ao estrangeiro! Fica pouco tempo mas se calhar quando regressar também não é logo para vir ao Pópulo... :)
De resto só hoje é que li com sossego aquilo que estava escrito e fiquei envergonhada com várias gralhas que escaparam. Quando se escreve à pressa, dá asneira muitas vezes. Já as corrigi,e vocês foram tão simpáticos que nem disseram nada...
Dois de vocês tocaram num ponto importante: é que o medo não desapareceu logo. Pela minha experiência, creio que só desapareceu mesmo no maravilhoso Primeiro de Maio!