sábado, abril 26, 2008

O Diário da Ana

Sexta-feira, 26 de Abril de 1974
Como é possível em tão poucas horas as nossas vidas terem levado uma reviravolta tão grande??? Recordo o princípio da semana quase como se estivesse a viver noutro país.

Ontem nem fomos ao emprego – completamente impossível! – e estivemos quase toda a noite acordados a discutir com a malta amiga tudo e mais alguma coisa. Há boatos, há informações, toda a gente “sabe” alguma coisa que os outros não sabem, mas na maioria dos casos andamos a tomar os desejos por realidades, o que é normalíssimo. E os nossos ‘desejos’ estiveram tantos anos reprimidos que agora rebentam num fogo de artifício. Eu e o João – e toda a malta da nossa idade! – nunca vivemos noutro regime, não sentimos nunca o que pode ser a democracia, sabíamos que odiávamos o modo como se vivia mas tinha-se a ideia de que se calhar nunca mais íamos sair desta porcaria.
E já está!!!

Hoje tivemos de ir trabalhar, a verdade é que o país continua a precisar que se trabalhe e agora mais do que dantes, porque o fazemos para o bem comum. Contudo, metendo a mão na consciência, estive de facto no meu local de trabalho, mas durante todo o tempo quase que só conversei com os meus colegas… Havia uns ainda medrosos, outros com o freio nos dentes que já tinham na sua cabeça mudado o país de pernas para o ar, muita gente a querer apenas informações, aquilo era um pandemónio. Sentada à secretária a fazer alguma coisa não estive nem metade do tempo ….

Quando saímos voltámos a dar voltas por aí, a pé, associei-me a grupos que gritavam palavras de ordem, e soubemos que finalmente se tinha entrado na PIDE mas os tipos dispararam e os únicos mortos a lamentar nesta revolução, foram eles que os fizeram. Muita gente não entende porque se esperou tanto tempo para invadir a António Maria Cardoso. Eles tiveram mais de um dia para destruir documentos e queimar papeis. Quanto às fichas que tinham de nós, isso não lhes interessava para nada queimarem-nas (parece que havia 3 milhões de pessoas com ficha – um terço de nós!) mas imagina-se que quiseram ‘defender’ os informadores que deviam ser outros tantos.

Enfim, uma nódoa. Muitos de nós pensamos que foi um erro esta espera, e o excesso de tolerância por vezes paga-se caro.
Mas as nossas cabeças fervilham de planos, e só nos apetece sorrir ao ver que, pela primeira vez, Portugal ocupa a primeira página da imprensa estrangeira pelos melhores motivos. Nunca na minha vida, vi esta terra elogiada sem ser pela propaganda paga pelo SNI, ou uns elogios que cheiravam logo a coisa falsa. Desta vez, andamos aos encontrões na rua a enviados de todo o mundo que filmam, fazem entrevistas, querem saber coisas, e sabemos que o que se passou ontem – e ainda estamos a passar – causa admiração a todos.

A Revolução dos Cravos como lhe passaram a chamar, é um nome muito bonito.

4 comentários:

Anónimo disse...

Grande Emiéle.
De férias e tudo, mas mantêns as tuas rubricas. Linda menina...
De facto estes dias a seguir eram vividos numa espécie de sonho acordado.
Não se pode transmitir, sabes...?
Só quem o viveu.

Anónimo disse...

Ainda a tinta do que escreveu a Mary não secou e cá estou eu!
Eu não tinha trabalho a fezer, e foi só viver esses momentos até ao âmago!
E ainda se sinto um pouco arrepiado da emoção que mos percorria.

Anónimo disse...

Ontem não vim cá e hoje ainda «não chegou» a folha do Diário.
É difícil lembrar esses dias.
Sabes que até ao Primeiro de Maio me lembro como se fosse um único dia?... Parece ter sido um dia enooorme que só respirámos muito fundo nessa famoso 1º de Maio.

josé palmeiro disse...

Pois foi, ontem andei por cá, mas depois tive que me dedicar aos netos e a brincadeira, acabou-se.
Muita coisa fervilhava nas nossas mentes nesses dias subsequentes.