segunda-feira, abril 07, 2008

O Diário da Ana

Domingo, dia 7 de Abril

Ontem, depois do cinema, ficámos na conversa quase toda a noite. Não foi uma ‘directa’ como nos velhos tempos da Faculdade, mas quase. À saída do cinema ainda fomos tomar uns cafés e umas cervejas ali à Riba D'ouro onde encontramos o Vasco e o Pedro. Depois a conversa aqueceu, animou, e lá começámos a subir e a descer a avenida como de costume, a trocarmos opiniões. De vez em quando sentávamo-nos num banco, quando nos irritávamos mais e queríamos parar, mas depois continuávamos o passeio enquanto se analisava as soluções para “salvar a pátria”.

A verdade é que andamos muito ralados porque o Carlos, o irmão mais novo do Zé, está já escalado para ir para a Guiné. Espera o embarque a qualquer altura, e a família está como se calcula. O Zé está preocupadíssimo com a mãe, que não tem andado nada bem do coração e este choque não a vai ajudar nada, mas o que se pode fazer? O Carlos foi metendo adiamentos enquanto completou o curso, mas depois de receber o diploma já não pode esticar mais o tempo.

Claro que durante toda a noite de conversa fomos relembrando a malta amiga que foi refractária e conseguiu escapar para Inglaterra, para França, para a Bélgica, para a Suíça. A vida por lá não tem sido fácil, mas ao menos estão vivos e não mutilados. O Pedro, que esteve em Moçambique, e acabou há pouco a comissão contou-nos coisas impressionantes. Esta noite tive pesadelos. E pensar que os terrenos ficam agora minados, e que aquelas minas podem vir a rebentar sabe-se lá quando, se calhar quando já não houver guerra, é uma ideia horrível…

E quando será isso? Quando “não houver guerra”? Esta parece ser uma guerra sem fim, mesmo que os militares já digam que não a podem ganhar.

Um pesadelo, sim.


13 comentários:

Anónimo disse...

Esta é uma página quente deste Diário.
Tinha de ser, não é Emiéle?
Ate agora ( e se calhar muitos outros dias para a frente) tinhas apenas falado num dia-a-dia "normal", idêntico se calhar ao que se vivia noutras terras há 30 anos.
Agora, é a doer!

Anónimo disse...

Nessa altura estava-se sempre a pensar que aquilo não podia durar muito mais e estava quase a rebenta fosse o que fosse. Mas depois sentia-se uma nuvem negra a pesar em cima de nós e o desespero de pensar que nunca mais! Parecia uma maldição...

Eu ainda ia conseguindo uns adiamentos por estar a estudar. Mas se por um lado estudava porque sabia que um chumbo 'era a morte do artista' a verdade é que quanto mais me aproximava do fim do curso, mais me aproximava da incorporação. A angústia era horrível.
E como aqui se diz, os relatos da guerra era de nos deixar sem pinga de sangue. Aquilo era um pesadelo, como o são as guerras!

Anónimo disse...

A Joaninha diz que agora é a doer.O curioso é que era sempre a doer...Havia no dia-a-dia uma sombra permanente...claro que se jantava fora que se ia ao cinema que até se cantava.Mas havia uma reserva de medo,apesar da muita ignorancia sobre o que realmente se passava.Tenho aerogramas dos 3 teatros de guerra e dos relatos que ouvi depois do "regresso", só em alturas de grande bebedeira ,se falava concretamente do que se tinha visto ou FEITO.Mas já o ano passado afalei aqui de alguns exemplos.e não vou repetir porque a esta distancia ainda doi.Muito.AB

Anónimo disse...

A Riba d'Ouro era nessa altura uma "universidade" de referencia.Chamava-se mesmo "Academia do Tremoço".Ainda ontem num programa do ´joão lopes entrevistando Fernando Lopes se falava de "sangues" da cidade a correr nas veias de cada um (neste caso nas do Lopes).E dessa iconografia lisboeta de que fzia parte a Riba d'Ouro estava inscrito o Belarmino.O personagem (quando alguém lhe pagava a sopa)e depois o filme.AB

Anónimo disse...

Isto hoje está teimoso.O anónimo sou eu.AB

josé palmeiro disse...

Pois eu, não consegui adiar. O ano de 1969, foi madrasto e padrasto para muitos que actuavam nas associações de estudantes e no movimento que, naquela altura atingiu um ponto alto.
Consequentemente, lá fomos para Mafra onde nos esperavam, meses e anos de espectativa quanto a um futuro melhor. De resto foi sofrer e, o que se passou depois, já voçes sabem.
Bem documentado, no "Diário da Ana".

Anónimo disse...

Realmente já se estava no estertor do regime, a própria PIDE já andava um tanto confusa, mas tudo doia e muito como disse a AB. A vida ia decorrendo, até com uma certa ligeireza e boa disposição ( cultura, conversa, trabalho) mas a sombra que pairava nunca se dissipava. Ainda tinha havido um sopro de esperança com a chegada do Marcelo, menos sinistro que o velho Botas, mas era roupa nova para o mesmo corpo velho. As «conversas em família» que na série «Conta-me como foi...» estamos agora a ver, era o tal paternalismo que só dava vontade de vomitar.
E sempre o espectro da guerra como aqui se vê.

Anónimo disse...

A AB diz uma coisa que a malta mais nova pode não ter muito a ideia: é que se 'falava' pouco disso. Como que um tabu que nós próprios impúnhamos.
Não sei explicar porquê, mas era isso mesmo. Só quando a coisa rebentava, quando sabíamos que um amigo tinha apanhado com uma mina e rebentado, ou um de nós era chamado, ou... estávamos com uns copos a mais, é que falávamos disso.

cereja disse...

Nós sabíamos Zé, que tinhas tido esse enorme azar em 1969. mas também casaste, e o teu filho nasceu em Moçambique, não foi...? Acabaste por ter algumas boas recordações :D
Contudo, é claro que para uma mulher é um tanto diferente - o sofrimento em si é diferente, não sei nada avaliar o mais ou o menos, que saber que um filho, um noivo, um irmão está nesse inferno é também horrível.

A AB põe o dedo num ponto sério e importante - é que «era sempre a doer». Como que uma névoa que envolvia tudo e não nos deixava esquecer onde se estava, em que terra se vivia, e com a guerra sempre presente.
Eu estou a tentar transmitir um dia a dia normal e até em certa medida bem disposto, mas...

josé palmeiro disse...

Há por aí algumas confusões que vou tentar desfazer.
Assim, depois de alguns adiamentos, eu sou de sessenta e sete, tenho o nº mecanográfico 010596/67 e só fui para a tropa em 1969. Mafra, foi o destino, antes, uma tentativa frustrada de entrar para a Marinha Mercante e depois, então a Veterinária e a incorporação sem apelo, nem agravo. Depois da recruta em Mafra, sigo para Santarém, onde faço a especialidade em Cavalaria. Entretanto, entra Mafra e Santarém, caso, aproveitando as férias de Natal (Dez.1969). Em Santarém, para lá da especialidade,fico mais meio ano, já como aspirante, a instruir em cursos de sargentos milicianos(2), sempre com a espada apontada, à espera de uma mobilização. Consigo entretanto uma colocação em Estremoz, para aminha mulher e eu peço transferência, uma vez que era também uma unidade de Cavalaria, onde prossigo até Dezembro de 1973, tendo em 1971, nascido o meu filho mais velho. Em Janeiro de 1974, parto para Moçambique, com um contrato civil, para me safar a ser chamado para o curso de capitães e consequente mobilização, coisa a que me tinha safado ao tempo. Aí sim, em Agosto de 1974, já depois do 25 de Abril, nasceu o meu segundo filho, em Moçambique. Regresso a Portugal, cinco dias antes da independência de Moçambique.
Por tudo o que afirmei, sei bem aferir o sofrimento e a agonia em que, mulheres e homens, passaram por essa época. Quanto às mulheres, sei pelo que tinha em casa e pelas cenas dramáticas a que assisti em toda essa vida que passei, com mobilizações constantes, com partidas e chegadas felizes e outras dramáticas, como podem calcular.

cereja disse...

Realmente não tinha entendido a tua história assim, Zé Palmeiro. Sempre pensei que tivesses ido para Moçambique mobilizado. demos dizer, que no meio da angústia geral tiveste uma pontinha de sorte, independentemente de só o facto de se estar tantos anos na tropa estragasse a vida e carreira de uma pessoa!
E depois, mesmo que se não passasse connosco mesmo, bastava essa onda apanhar os nossos amigos para sofrermos também!

Anónimo disse...

Ainda não arranjei coragem para dizer nada aqui (devo confessar que nunca fiz um comentário num blog apesar de ler muitos deles!) mas hoje vai ser uma estreia.
Quero dar os parabéns à Emiéle, pelo blog em geral, dos mais interessantes que vou lendo, e por esta série das memórias de Abril em especial.
Este «Diário da Ana» está particularmente bem conseguido pela simplicidade com que está escrito. Todo o blog Pópulo está escrito num tom coloquial muito agradável, mas aqui, no Diário, parecem mesmo folhas de papel rasgadas de um Diário a sério. Eu sou dessa época, mais ano menos ano, e fico com um nó na garganta quando o leio.
Parabéns, mais uma vez.

José Paulo

cereja disse...

Olá José Paulo, ainda bem que perdeste a vergonha :)
(já tenho explicado a quem deseja aquilo que escreve 'assinado' nem que seja com um nick ou as suas iniciais, que o pode fazer se clicar onde diz Nome/URL e depois escrever o nome que deseja, ignorando o URL (que é o que atrapalha mais as pessoas)
é assim que a Joaninha, King, AB, Mary, etc, fazem)

Quanto àquilo que dizes só posso ficar agradecida. Eu, de facto, esforço por manter esse tom coloquial aqui ao blog, porque acho que é o que convêm mais às coisas que costumo dizer. Não me vejo a escrever de um modo mais literário ou mais sofisticado, mas isso sou eu, é claro. Há blogs que o fazem com êxito.
Aqui, a ideia do Diário, era exactamente essa: imaginar que era essa Ana, que defini no primeiro dia, a falar do seu dia-a-dia.
E pelos vistos, a malta tem aderido.