domingo, março 30, 2008

Um Caderno de Capa Castanha XXVI - o meu bairro

«Eu vivi os meus primeiros 13 anos na mesma casa. Depois os meus pais tiveram de se mudar para outra terra e desse bairro ficou-me apenas a recordação, mas é interessante que, anos depois, quando me casei procurei alugar uma casa na mesma zona!
Não era um bairro popular, seria um bairro de classe média para a época, os prédios já tinham sido habitados, creio eu, não fomos estrear as casas, mas eram ainda bastante novos.
A minha rua era muito sossegada, não tinha nenhum comércio, e nessa época eram raros os automóveis – poderiam passar uns táxis, mas nem os meus pais nem os seus vizinhos tinham carro próprio, portanto a rua parecia larga, apenas os passeios calcetados com as pedrinhas brancas habituais de Lisboa e a rua cinzenta escura de paralelepípedos de basalto. Eu passava bastante tempo à janela. Morávamos num rés-do-chão, muito alto, era impossível saltar para a rua – não que tal me tivesse alguma vez passado pela cabeça – mas suficientemente perto para apreciar tudo o que lá se passava. Alguns meninos brincavam na rua, faziam corridas de caricas, corriam atrás de gatos ou cães, brincavam às escondidas, enfiando-se nas escadas que tinham a porta mal fechada. As meninas não. Meninas bem educadas, iam com uma pessoa crescida até ao jardim público mais perto e aí encontravam outras meninas para brincar – jogos de roda, ao lenço, linda-falua, cinco cantinhos…
Isto enquanto era mais pequenina. Depois de começar a ir à escola, já andava sozinha, e gostava bastante de ser mandada às compras, que como disse eram sempre noutra rua que a minha não tinha comércio. Mas havia algumas lojas que me encantavam.
Numa esquina de uma rua um pouco mais distante, havia uma loja que era um misto de papelaria, alfarrabista, loja de brinquedos, venda de jornais e revistas, utilidades para a casa. Era numa esquina e tinha duas montras que faziam ângulo. O dono era uma figura inesquecível. Era muito grande, a mim parecia-me um gigante, mas a verdade é que era maior que qualquer dos meus familiares, tinha uma cabeleira que lhe chegava aos ombros e uma barba de profeta. Creio que também se vestia de um modo um pouco bizarro, com fatos muito antiquados, mas o que mais me espantava era a parte capilar, a enorme barba que se misturava com a cabeleira. Ele metia-me algum receio, mas o que lá vendia era tão atraente que, fascinada, tinha coragem de entrar. Foi lá que comprei uns apara-lápis que me encantavam, coisa nunca vista em feitio de coração, uns lápis amarelos com borrachinha na ponta, embora as borrachas que apagavam a sério metade para lápis metade para tinta não eram especialmente bonitas, aparos novos, e foi lá que comprei a caneta de aparo de que mais gostei, era triangular e portanto os dedos não escorregavam. Sempre adorei produtos de papelaria, o cheiro a papel, as caixinhas com etiquetas dos diversos produtos, embora naquela loja não estivessem particularmente bem arrumados. Dado a grande variedade de produtos que vendia, aquela loja parecia uma caverna do tesouro, as montras em vez de exporem os produtos estavam atafulhadas com tudo numa confusão medonha e nem sei como o Sr. Eumareira se entendia ali.
Ele não se chamava Eumareira, isso era o nome que estava na tabuleta, creio que era Eurico, qualquer-coisa (talvez Matos) Pereira, e das diversas sílabas construiu o nome e era assim que era conhecido.

Quando tinha 8/9 anos descobri que aquele senhor também ‘alugava’ os livros usados. Foi uma satisfação, com 10 tostões trazia um livro, depois de o ler levava-o lá e ele devolvia-me 5. Eu juntava outros 5 e trazia outro…A quantidade de coisas que li por esse sistema!...
Era de facto uma caverna do tesouro.»


Clara

7 comentários:

josé palmeiro disse...

Estória, simplesmente genial. Feita de coisas simples, reconstruíste uma época. Foi assim a nossa meninice, calma e harmoniosa, cheia de encantos e de quiméras.
Revi-me nas tuas palavras, se bem que não em Lisboa, mas na minha terra, na "caverna dos sonhos", que era a papelaria da minha tia Joana.

Anónimo disse...

Eu bem queria não te gabar tanto, mas seria injusta.
Os domingos onde (no teu pleno direito) não aparecerem aqui os posts do Era uma vez.. fizeram-me falta!
Muito bom, também este. Como disse o Zé, é uma época que revive!

cereja disse...

Obrigada aos dois pela simpatia.
Realmente estas recordações são interessantes para quem relembra, e espero que também interessantes para quem nasceu muito depois e já não conheceu este ritmo mais pachorrento, quase provinciano hoje.

Maryzinha, realmente houve uns Domingos onde «tive falta» de comparência, mas de uma vez não estava 'cá' e de outra não tinha nada preparado.

Anónimo disse...

Eu não sou já bem desse tempo, mas sei que era tal e qual assim. Na cidade as meninas não brincavam na rua, mas não porque fosse perigoso, era porque «não parecia bem».
E essas lojas que vendiam tudo, com coisas quase penduradas do tecto, ainda se vê na província.

Anónimo disse...

Havia muito mais coisas que «os meninos» faziam nas ruas. ;D Mesmo em Lisboa, quando quase não havia carros nos bairros mais residenciais, andar na rua era bem seguro. Eu devo ser um tanto mais novo que a «entrevistada da Clara» mas andava à vontade na rua com os meus primos, sem qualquer prolema.
(Muitas vezes identifico-me quase com o Carlitos do 'Conta-me como foi...'; eu era mais ou menos assim!)

Anónimo disse...

Ainda não é desta que deixo alguma coisa que se veja.As "meninas" sairam agorinha mesmo,foi o tempo de põr a máquina a lavar...cozinha numa confusão...Foi um excelente almoço e a converseta foi bem divertida.E lá vamos começar a pôr a caminho aquilo a que nos propusemos.tudo demora muito tempo nesta terra e esta não vai ser nada fácil.Mas pronto,o mundo não se acaba hoje...AB

cereja disse...

AB, tu sabes que quando te apetecer falar sobre algum dos temas que aqui aparecem, me sabe bem, mas é quando e se te apetecer.
Neste momentos tens questões bem mais importantes a tratar do que uma achega aqui ao Populozinho...