Um Caderno de Capa Castanha XXV - Avós 2
«Guardei para o fim, a recordação mais terna, a da avó Nô. (a outra avó também tinha diminutivo - a avó Bita; mas vê como um é mais doce do que o outro)
Esta era a avó modelo, a avó ideal.
Como avó, é claro, mas toda ela era um encanto. O contraste com a avó paterna era grande, até no físico. Muito bonita também, pequena e frágil, olhos e cabelo castanho claro, enquanto na outra se sentia força e energia, esta era toda fragilidade e delicadeza.
Uma das filhas mais novas de uma família ainda aristocrática, muito novinha entrou em rebeldia com os valores conservadores da família e, em luta aberta, decidiu casar com o meu avô, advogado, poeta, escritor e… revolucionário! Estas questões de família só bem mais tarde as conheci, recordo é a doçura, paciência, tolerância infinita daquela senhora que contrastam com a outra imagem da insubmissa.
Viviam um pouco mais longe (contudo na Lisboa daquela época nada era muito longe…) e eu adorava quando ia dormir lá a casa. Para mim a casa era lindíssima, não apenas por ter muito espaço mas, sobretudo, porque era mobilada com móveis que eu já sentia como “diferentes”, como por exemplo a sua cama que era uma cama de dossel, como eu via nos livros de histórias de fadas. A sala muito linda, com o piano, quadros e esculturas, eu ‘sentia’ que eram de valor e de facto mais tarde confirmei essa minha sensação. E pasmava com a enorme biblioteca do meu avô, livros até ao tecto e o cheiro a papel. Era todo um ambiente de requinte, apesar de não haver já muito dinheiro que os tempos eram difíceis, o que lá havia era de primeira qualidade mesmo sendo pouco. E sonhava quando crescesse ter uma casa assim.
As prendas de que mais gostei em criança, foi ela que mas deu. Lembro-me de um boneco que podia corresponder ao que anos depois se chamou «bebé chorão», grande, quase do tamanho de um bebé verdadeiro – adorei aquele bebé e o carrinho que o acompanhava. Querida avó! De vez em quando dava-me um vestido novo, nunca ‘útil’ ou prático, era sempre uma surpresa, com uns bordados, uns favos-de-mel, sentia-me como uma das minhas bonecas. Como eu nunca tinha apetite, quando dormia lá em casa, ela dava-se ao trabalho de fazer para o meu pequeno-almoço um prato de leite-creme queimado na altura. Explicava aos meus pais que levava leite, farinha, açúcar e ovo, portanto era um bom pequeno-almoço… E era, mas era também o começar o dia com uma sobremesa, um mimo!
O defeito que as pessoas lhe apontavam era que “tinha a mania das limpezas”. De facto a casa brilhava! As toalhas de mesa eram brancas e iam para lavar à mais pequena nódoa. As toalhas turcas, e imagino que também os lençóis, eram mudados mais de uma vez por semana… Mas esse aspecto de asseio exagerado, que não a impedia de demonstrar a sua meiguice com beijos, festas e uma ternura imensa, fazia que cheirasse tão bem! Mesmo quando eu estava ainda a dormir sabia quando ela entrava no quarto porque cheirava a avó Nô, um leve perfume que mais ninguém tinha.
Era uma fada boa. Era a minha querida avó»
Clara
7 comentários:
Muito bonito, comovente!
Faz-me pensar que muitas vezes não verbalizamos todos os nossos sentimentos perante pessoas que gostamos.
Estes textos da Clara remetem-me para uns que a minha filha escreveu a que chamou "o que me lembro". Textos curtos. Ao lê-los fiquei a saber mais sobre ela e aproximou-nos ainda mais, porque desencadeou conversas muito intimistas.
Vê-se que é Domingo!
Estas horas e o Pópulo tão "silencioso"...
Apesar de um comentário 'invulgar' da minha homófona :D Digo invulgar porque ela comenta pouco (mas bem!)
Sabes Emiéle (Clara?) a gente fica com a boca a saber a pouco. Depois disto, queria saber mais dessa senhora, que se opunha à família tradicionalista de um modo activamente rebelde e era tão meiga agora.
E a neta retribuia. Esta recordação não pode ser mais meiga. Que bom poder ter recordações destas, e sentir ainda o perfume dessa avó que cheirava tão bem :D
Ai, Emiéle, a entrevistada da Clara não ma podia emprestar?...
Para quem não se lembra de avós, como eu, isto é uma espécie de sonho.
Mas o relato é tão vivo que é como se realmente ma tivesse «emprestado»!
Que sorte a dela!
[Sem-nick, uma vez a Clara chamou-lhe «madrinha» e na minha cabeça passei a pensar como «Madrinha da Clara»; sempre dá para uma espécie de identificação]
Já gastei quase todos os adjectivos neste bela série. Só posso dizer que quero mais! E estou um pouco como a Mary, esta parte não pode ser 'continuada'? A AB fez assim com a sua história e acho um bom método.
Estas, não são horas de comentar, mas que fazer, se só agora aqui cheguei?
Eu, que sou avô, como gostaria de poder ouvir, daqui por umas décadas, os meus netos dizerem coisas assim!
E acredito que o digam , ou que o sintam que é o importante.
Embora o verbalizar-se como começou por dizer a Méri, sabe muito bem a quem o ouve.
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