segunda-feira, março 10, 2008

A Roda da Vida

Estes últimos dias, tenho escrito aqui menos do que o meu costume
Tudo o que deixei dito foi verdade.
Fui sincera quando disse no sábado de manhã que não me apetecia escrever por rotina - apesar de, na altura, ter considerado a hipótese de ao longo do dia ainda vir aqui deixar alguma observação sobre muitas das coisas que me costumam despertar interesse – e também é verdade que ontem era o «meu dia da mãe» e, como isso era o mais relevante, ficou como uma bandeira a assinalar o dia.

Mas a vida é irónica e cruel.

Foi este fim-de-semana, que ela, a Vida, decidiu que era altura de acabar, para uma muito, muitíssimo querida amiga.
Falei aqui no Pópulo várias vezes dela.
Não sei já onde estão os posts que escrevi, mas sei que contei histórias uma senhora de mais de 90 anos, de uma inteligência e de um humor invulgares. Tenho a sensação de a ter conhecido desde sempre. E como acontece às pessoas que conhecemos «desde sempre», temos a noção mágica e absurda que nos vão acompanhar também para sempre.
Que estupidez a minha.
Mesmo nos seus últimos anos, em que vivia acamada, ela construiu a sua vida de um modo só seu. Quando a visitava reparava e ria-me com ela sobre isso porque aquela cama parecia uma casa completa. Ela acumulava em cima da cama, livros muito antigos ou acabados de sair, revistas, jornais, artigos de toillete, caixinhas com mil e uma coisas, tabuleiros cheios das recordações que precisava para se sentir mais confortável, bombons e bolachinhas que lhe iam levando e ela queria ali à mão para pode oferecer a quem a visitava, várias fotografias é claro, enfim se ela não conseguia circular pela casa conseguia que fosse a casa que a vinha rodear a ela.

Nos últimos dias tudo estava já diferente, a cama passou a ser uma cama articulada onde não havia espaço para nada a não ser o seu corpo magríssimo. O sofrimento aumentou, a ironia que quase a
até ao final a acompanhou, já não estava presente.
Mas eu não a quero recordar assim!

Recordo, e é o que vai ficar no meu coração, a mulher extremamente inteligente, muito culta, com um maravilhoso sentido de humor, muito bonita e coquete, atenta a tudo o que se passava em seu redor, sensível, que elogiava com facilidade e gosto mas também criticava com igual certeza e justiça, justa, afectuosa, a minha muito querida amiga. É essa a foto que quero guardar e não a do corpo torturado que nos abandonou.
Sei bem que era assim que ela queria ser lembrada.
Mas, como disse, a Roda da Vida não pára e por vezes é irónica.

Ontem foi simultaneamente um dia de alegria e dor.
A celebração de mais um ano do meu filho, símbolo da continuação da minha vida e o que lhe dá sentido e futuro, e a despedida desta grande e querida amiga que deu sentido ao meu passado.
Ela não gostava muito de despedidas, mas guardava os postais que ia recebendo. Este é o meu postal, gostava que ela o recebesse e o guardasse junto dos outros que lhe mandei ao longo da minha vida.
Adeus.

18 comentários:

méri disse...

Um Abraço, Emiele!

cereja disse...

Obrigada Méri.
Escrevi isto engolindo em seco, porque tenho aqui na garganta um nó que teima em não passar.
NUNCA SE ESTÁ PREPARADO!
Por vezes oiço «mas já se esperava...» e é uma grande mentira.
NUNCA se espera, é sempre um desgosto imenso.

josé palmeiro disse...

Lembro-me perfeitamente de falares nessa Senhora e na empatia que criaste com ela.
Mas, a vida é madrasta e cria-nos partidas destas.
Um grande abraço, é só o que te posso deixar!

cereja disse...

Obrigada Zé.
Era mais que empatia, era admiração, era amor. E se, no estilo dela, chamei ao que escrevi «um postal» imaginando que ela o recebia, era realmente um faz-de-conta porque, tal como eu, ela também só acreditava NESTA VIDA, a que vamos vivendo dia a dia, com emoções enormes, com grandes alegrias e grandes tristezas, com esperanças, com desilusões, a Vida afinal.
E como não deixou filhos, é em nós que ela não pode morrer. E seria bom que num futuro se conseguisse tornar este mundo, aquele Mundo de justiça que ela desejava.

Anónimo disse...

Nem sei que te dizer,a não ser que devias ter telefonado.Era esperado mas no fundo espera-se que não aconteça,que alguma coisa suspenda aquilo que sabemos fatal...e a coincidencia de datas,que infelizmente eu conheço de forma bastante dolorosa,é sempre terrivel.Que o João sinta isso como um legado.Uma espécie de sinal de que alguma coisa recomeça quando outra se acaba e que lhe cabe de alguma forma a continuação do afecto e da delicadeza.AB

Anónimo disse...

Nem vejo que pudesses ter feito outras coisas, e a tarde será nesquecivel por muitas razões. A de ontem foi o espectáculo que, o mais controlado possivel, "alguens" gostam de exibir. Fica o postal, o legado, a saudade infinita.

Anónimo disse...

Disse a AB algo que eu sinto muito: a perversidade das datas.
É terrível.
E está sempre a acontecer.
Percebo que para vocês, para a tua família seja uma marca que deixa cicatriz.
Triste segunda feira esta, para quem te lê.

Anónimo disse...

AB - Obrigada pelo conselho.
Há datas que nos chocam mais quando coincide uma coisa má com uma outra boa. Nós já tínhamos essa experiência quando morreu o meu avô no dia dos anos da minha avó! E a minha mãe tem dito que essa «perversidade das datas», como se disse ali num comentário, acontece muito. Obrigada pelo conselho de que devo «sentir isso como um legado» tal como a AB disse.
«Uma espécie de sinal de que alguma coisa recomeça quando outra se acaba e que lhe cabe de alguma forma a continuação do afecto e da delicadeza» um bom conselho também acho e que me consola um pouco.
Para mim, a Pilhé, tal como o Pedro O. e um outro amigo Zé João de quem gostava imenso, não os quero deixar morrer.
Por outro lado, há uns que "morrem" mais depressa, mesmo que ainda estejam vivos, estou a lembrar-me de pessoas com quem me sinto muito magoado por se terem esquecido de mim. É como se morressem.

Anónimo disse...

Não esperava.
Quando de manhã vo que não havia posts à «tua hora» simplesmente imaginei que tivesses prolongado o tempo de repouso e mais nada.
Que choque em ver que o motivo era bem outro e tão mau.
Um desgosta destes é daqueles que não tem consolo, porque é irreversível.
É manter a saudade.

Anónimo disse...

Fiquei tão chocada que até gralhei o nome!
Falta o i é claro, e mais abaixo queria dizer «quando de manhã VI...etc» e não vo.

Anónimo disse...

Uma pessoa está uns dias sem cá entrar e apanha com dois posts seguidos (é maneira de falar) quase opostos.
Acho que não cheguei a dar os parabéns ontem e hoje só posso dizer que sinto muito esse teu desgosto.

Anónimo disse...

Dizes uma coisa (ou tu ou foi nos comentários) que é importante para mim por sentir isso. A importância que tem a memória e as recordações quando não há o tal auxílio da crença noutra vida para «almofadar» o sofrimento. Pelo que aqui se disse, mesmo essa senhora sendo de outra geração também não era crente, e isso dá mais responsabilidade a 'não apagar a memória'.
A resposta do João (creio que o teu filho) é muito interessante; ele chama a atenção de que há também pessoas que 'morrem antes do tempo' pelo seu comportamento que as afasta do nosso afecto. É uma espécie de suicídio afectivo.

josé palmeiro disse...

Tens razão Emiéle, era mesmo AMOR!
A tua resposta, colocou o assunto, no sítio certo. Depois, a vinda do teu João a terreiro, dizer o que disse, ainda me deixou mais comovido. Tem, mesmo, toda a razão! A morte, não pode ser só, o desaparecimento físico, pode-se morrer, ficando vivo, quando o comportamento a isso leva, tens toda a razão.

saltapocinhas disse...

lembro-me bem de falares dessa senhora...
sinto muito!

cereja disse...

Obrigada a todos!
É mesmo certo que o partilhar certas emoções pode ajudar-nos um pouco. Foi bom ouvir as vossas palavras.
Hoje sinto-me tão cansada, por dentro e por fora que creio ser capaz de dormir 12 horas de seguida.
Despeço-me já. Abraços a todos.

Mar disse...

O meu abraço também, Emiéle, não quero repetir o que estes bons amigos já te disseram.

Anónimo disse...

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cereja disse...

Obrigada Mar.
A pouco e pouco vamos aceitando.
Mesmo que doa, as feridas cicatrizam, é a lei.


(quanto ao senhor do spam, tá bem, tá bem...)