Um Caderno de Capa Castanha XX
A "Bá"
«Como já uma vez te disse, eu recordo poucas coisas de quando era realmente muito pequena, como aliás toda a gente. A partir de certa idade, mais ou menos de uns 3 anos em diante, as recordações são continuadas mas antes disso só me ocorrem uns relâmpagos que rompem o nevoeiro que cobre esses primeiros anos de vida. Há até algumas ‘recordações’ que não sei se o são de facto ou são histórias que ouvi contar e agora as relembro como vindas da minha memória.
Mas uma imagem rompe esse nevoeiro que sei ser verdadeira até pela onda enorme de ternura que sinto sempre que a evoco: a da Bá.
Quando tento olhar para muito atrás no tempo, as mãos, a voz, o riso, creio que o próprio cheiro que me chegam são da Bá.
Nessa altura, em que o trabalho doméstico era bem mais complicado e demorado do que o é hoje, mesmo para uma família pequena como era a minha, se a mãe trabalhava era frequente em meios com algumas posses, existir para além da criada interna que se ocupava com o que respeitava à casa, uma outra empregada para cuidar das crianças. Quando eu nasci foi contratada uma, da família da velha criada da minha avó materna, que me acompanhou até eu entrar no Jardim Infantil.
E correspondem a ela as imagens mais arcaicas da minha memória – misturadas com as dos meus pais é certo.
É uma recordação sem mácula, só luz e alegria. Creio que isso deve ser devido ao facto que enquanto os meus pais me reprimiam e castigavam, mesmo muito pequena, como é normal, ela era de uma tolerância infinita e não havia vontade que não me fizesse. Aquele era o colo meigo e disponível em permanência.
Chamava-lhe Bá porque deve ter sido das primeiras palavras que pronunciei – mamã, papá, bá. O seu nome era Isabel e chamavam-lhe Bela, mas disseram-me que na sequência da primeira vogal que pronunciei ter sido o A a crismei como Bá. Era a minha Bá, que se mistura com as minhas primeiras e mais agradáveis recordações. Recordo as suas mãos, grandes e fortes, na minha memória é claro, que me seguravam, levantavam e tiravam da cama, me vestiam, me lavavam. Recordo o seu cheiro familiar, (seria um sabonete ?) diferente de todos os outros. Recordo sobretudo a sua voz e o seu riso. E a infinita confiança que sentia por tudo o que ela me fazia. Protegida pela Bá estava defendida de tudo…
É claro que ela também não estava a li para ‘brincar’ comigo. Essa noção de um adulto a brincar com uma criança pequena é coisa actual. Ela ocupava-se de tudo o que me dizia respeito – lavava, passava, arranjava a minha roupa; cozinhava a minha comida, cujos produtos também comprava; mudava-me as fraldas e dava-me banho; punha-me a dormir quando eram horas.
Mas tudo isso envolto em mimo e carinho. Cantava para mim enquanto passava a ferro, ensinava-me as primeiras gracinhas (dizer adeus, onde-pôe-a-galinha-o-ovo, cucú ) que me faziam sentir muito orgulhosa de mostrar depois aos pais, acudia à primeira rabugice e procurava distrair-me ou adormecer-me conforme fosse a hora. Ela a imagem mais próxima de uma fada que eu imagino. A minha fada pessoal.
Infelizmente quando entrei para o Jardim-de-Infância ela deixou de ser precisa e eu só a encontrei muito poucas vezes depois disso, porque ‘voltou para a terra’ e só a via quando vinha a Lisboa. Mas sei bem que aquele amor que eu sentia era profundo e mútuo - soube mais tarde que ao ser madrinha de uma menina lhe deu o meu nome. Creio que morreu nova, o certo é que nunca mais a vi a não ser nas minhas recordações mais doces.»
«Como já uma vez te disse, eu recordo poucas coisas de quando era realmente muito pequena, como aliás toda a gente. A partir de certa idade, mais ou menos de uns 3 anos em diante, as recordações são continuadas mas antes disso só me ocorrem uns relâmpagos que rompem o nevoeiro que cobre esses primeiros anos de vida. Há até algumas ‘recordações’ que não sei se o são de facto ou são histórias que ouvi contar e agora as relembro como vindas da minha memória.
Mas uma imagem rompe esse nevoeiro que sei ser verdadeira até pela onda enorme de ternura que sinto sempre que a evoco: a da Bá.
Quando tento olhar para muito atrás no tempo, as mãos, a voz, o riso, creio que o próprio cheiro que me chegam são da Bá.
Nessa altura, em que o trabalho doméstico era bem mais complicado e demorado do que o é hoje, mesmo para uma família pequena como era a minha, se a mãe trabalhava era frequente em meios com algumas posses, existir para além da criada interna que se ocupava com o que respeitava à casa, uma outra empregada para cuidar das crianças. Quando eu nasci foi contratada uma, da família da velha criada da minha avó materna, que me acompanhou até eu entrar no Jardim Infantil.
E correspondem a ela as imagens mais arcaicas da minha memória – misturadas com as dos meus pais é certo.
É uma recordação sem mácula, só luz e alegria. Creio que isso deve ser devido ao facto que enquanto os meus pais me reprimiam e castigavam, mesmo muito pequena, como é normal, ela era de uma tolerância infinita e não havia vontade que não me fizesse. Aquele era o colo meigo e disponível em permanência.
Chamava-lhe Bá porque deve ter sido das primeiras palavras que pronunciei – mamã, papá, bá. O seu nome era Isabel e chamavam-lhe Bela, mas disseram-me que na sequência da primeira vogal que pronunciei ter sido o A a crismei como Bá. Era a minha Bá, que se mistura com as minhas primeiras e mais agradáveis recordações. Recordo as suas mãos, grandes e fortes, na minha memória é claro, que me seguravam, levantavam e tiravam da cama, me vestiam, me lavavam. Recordo o seu cheiro familiar, (seria um sabonete ?) diferente de todos os outros. Recordo sobretudo a sua voz e o seu riso. E a infinita confiança que sentia por tudo o que ela me fazia. Protegida pela Bá estava defendida de tudo…
É claro que ela também não estava a li para ‘brincar’ comigo. Essa noção de um adulto a brincar com uma criança pequena é coisa actual. Ela ocupava-se de tudo o que me dizia respeito – lavava, passava, arranjava a minha roupa; cozinhava a minha comida, cujos produtos também comprava; mudava-me as fraldas e dava-me banho; punha-me a dormir quando eram horas.
Mas tudo isso envolto em mimo e carinho. Cantava para mim enquanto passava a ferro, ensinava-me as primeiras gracinhas (dizer adeus, onde-pôe-a-galinha-o-ovo, cucú ) que me faziam sentir muito orgulhosa de mostrar depois aos pais, acudia à primeira rabugice e procurava distrair-me ou adormecer-me conforme fosse a hora. Ela a imagem mais próxima de uma fada que eu imagino. A minha fada pessoal.
Infelizmente quando entrei para o Jardim-de-Infância ela deixou de ser precisa e eu só a encontrei muito poucas vezes depois disso, porque ‘voltou para a terra’ e só a via quando vinha a Lisboa. Mas sei bem que aquele amor que eu sentia era profundo e mútuo - soube mais tarde que ao ser madrinha de uma menina lhe deu o meu nome. Creio que morreu nova, o certo é que nunca mais a vi a não ser nas minhas recordações mais doces.»
Clara
7 comentários:
Um registo diferente, desta vez, mais pessoal e sentimental (não que seja uma censura)
Mesmo assim, também daqui se consegue tirar pontos de diferença com a vida de hoje. Actualmente, também há famílias que optam por ter uma empregada em vez de mandarem as crianças para o infantário (e ao preço a que estes estão não é mau negócio) contudo não é «uma criada para os meninos» é alguém que faz tudo para além de tomar conta delas. Afinal a substituição do que seria uma «dona de casa».
O que contas é diferente. E não era uma família rica.
Como diz a Joaninha, um escrito diferente.
A mim, deixou-me sem palavras, tal o amor/amizade que dali se respira.
O meu maior respeito a todas as "Bás" do Mundo, que ainda as há.
:)
Só apetece sorrir com este post. Um sorriso bom, de amizade. Não há nada mais lindo!
(repararam no ferro de engomar de carvão que se vê na 1ª foto? está sobre a mesa em cima à direita!)
Também tive «uma espécie de Bá», mas era ainda aparentada. Ficou lá em casa a cuidar de mim, porque como dizes uma coisa eram as criadas para todo o serviço, outras as pessoas que cuidavam das crianças.
E que saudades... era mais disciplinadora do que a da senhora que fala (ou eu mais reguila) mas recordo com muitas saudades.
É que não tem o modelo das amas que existem hoje, basta o facto de as amas receberem as crianças na sua casa e estas outras 'amas' estarem na nossa.
Só cheguei agora e de um dia em que me apetecia que a minha Bea de quem já aqui falei me cantasse uma das suas cantigas...AB
Ontem não deu para vir aqui no final do dia responder aos comentários.
Aliás este era realmente um post um tanto intimista, difícil de comentar, imagino eu...
Como alguns de vocês fazem notar, até aqui havia algumas diferenças, em relação à actualidade, porque mesmo as famílias de um meio socio-económico mais alto que se permitem ter uma empregada interna, ela não está lá para cuidar das crianças só. Este caso (com as enormes diferenças) seria mais perto das nurses inglesas, o que seria um super-luxo hoje em dia.
Mas a relação estabelecida podia ser de um enorme afecto. (... ou não, é claro! conheço outros casos menos simpáticos)
Claro que o texto é muito bom, mas adorei as fotos de época!!!
Também reparei no ferro de engomar a carvão! Se fosse necessário um toque para mostrar a época, lá estava ele!
e a atenção da menina (era menina, não) a olhar para quem estava do outro lado da mesa...)
Que giras as fotos!
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