Um Caderno de Capa Castanha XVI
Não sei se vem a propósito, mas falou-me em espectáculos para crianças a propósito do Natal, talvez quisesse falar-me do Natal…?
«Olha Clara, do meu Natal falo-te para a semana, que é mais perto.
Hoje ia recordar que podia parecer por aquilo que disse da última vez quanto ao facto das crianças acompanharem os pais aos espectáculos que a sua vida diária era como hoje em dia, semelhante a dos rapazes e das raparigas. Mas olha que não.
Há sessenta anos a diferença de géneros era bem vincada, mesmo em pequenos. Uma menina, ainda com 6, 7, 8 anos devia ser iniciada nas tarefas domésticas. Essas “prendas” faziam parte da nossa educação e nem se imaginava que assim não fosse.
Até na escola, através da Mocidade sobretudo, havia aulas de Lavores, onde aprendíamos a bordar. Eu confesso que era uma negação! Fazia o ponto pé-de-flor, ponto de cruz, e bainha aberta, mas ficava por aí. Mesmo bem pequenas aprendíamos a enfiar a agulha, a dar o nó como devia ser e a linha não devia ser muito comprida que era «linha de preguiçosa». Além dos bordados que eu, e todas as meninas, aprendíamos na escola, as mães e avós ensinavam a pregar botões, fazer uma bainha, passajar umas meias. Tinha de ser. Não havia desculpas de falta de jeito, repetia-se tantas vezes até sair na perfeição.
Eu já não fiz isso, mas uma geração atrás ainda se bordava em ponto de cruz um quadrado de tecido com o alfabeto em letras muito artísticas; isso ficava com amostra do talento da menina e creio que servia para construir monogramas quando fosse necessário.
Mas para além da costura (cada menina tinha o seu cestinho de costura) desde pequena que aprendíamos a fazer a cama com os lençóis bem esticados e a colcha sem rugas, a limpar o pó, a lavar a loiça e limpá-la muito bem. Não fazíamos tarefas pesadas, é claro, encerar ou lavar roupa ‘não era para a nossa idade’ e havia empregadas que o faziam, assim como passar a ferro que era um pouco perigoso porque os ferros eram uns recipientes onde se metiam umas brasas de carvão e aquilo era um trabalho delicado e difícil.
Mas aprender umas coisas de culinária, não só se aprendia na escola, nos tais Trabalhos Femininos, como em casa também ensinavam como se preparava a comida, como se faziam bolos, se descascavam batatas, se tiravam as ervilhas e as favas dentro das suas vagens. Essa era uma parte de que eu gostava, o estalinho que dava a vagem e o tirar as bolinhas verdes das ervilhas lá de dentro para uma tigela, era bem divertido… Mas eram esses os preceitos. Uma menina devia aprender essas coisas, isso nem se podia discutir. O irmão já era mandado embora da cozinha que só lá estava a estorvar. Pois claro!»
Clara
10 comentários:
(parece que venho estrear os comentários; fico um tanto inibida...)
Obrigada Emiéle, Clara, madrinha da Clara, seja quem for que vai aqui falando nestes Cadernos que tenho andado a ler desde que poisei pela primeira vez no Pópulo. Têm tanto que ler, que ainda não li tudo.
As «prendas de uma menina» é coisa que hoje está em vias de extinção e ainda bem. Para mim, considero que o extremo oposto, como vejo nos meus netos também não é salutar porque não lhes ensina a independência. Ficar-se à espera que alguém nos cosa um botão, ou mandar uma loja fazer uma bainha e pagar-se mais de um conto de reis, a mim ainda me choca.
Mas a chumbada que era as tardes agarrada a uma porcaria de um pano a treinar essas coisas todas, era uma tortura. E fazer uma casa?! Estou a falar das casas de botões, era tão difícil, mas a gente aprendia!
Depois de ter lido vinha dar a minha opinião, mas houve quem se levantasse mais cedo :)
São recordações fortes e não é preciso ter direito ao nick da minha antecessora para ter passado por isso. Mesmo a «culinária» elementar que fosse, não havia rapariga que não soubesse o mínimo para ser independente. Não acho mal.
Bem, deixa-me esclarecer: não acho mal como ensino de vida diária, que todos deviam ter. Já não acho bem, como «obrigação feminina» que tinha de ser feita a bem ou a mal.
Agora, com electrodomésticos sofisticados (aquela «coisa» que cozinha tudo e é caríssima é um exemplo) e outros hábitos vindos do norte (como o edredon que se põe sobre o lençol debaixo e a cama já está!) a vida doméstica é muitíssimo mais fácil.
Mas por outro lado, esses hábitos ensinavam uma certa disciplina que era capaz de não ser mau de todo.
Mary falas da Bimby não é???
Eu fico parva com aquela coisa...
Eu hoje, venho contra a corrente. Tive a desgraça de ser filho único, e por isso, tive que fazer algumas das coisas descritas. Não a costura nem os bordados mas, fazer a cama, isso aprendi e ainda hoje, tenho manias em fazê-la bem feita. Mas na cozinha é que não me safei das tarefas, essa das ervilhas e das favas era uma maravilha. Depois, nesta época eram as nozes e as bolotas. Nas nozes havia o cuidado de ficar com as metades das cascas inteiras, pois davam para fazer barquinhos ou atá-las às patas dos gatos, para os ver correr desalmados, por aqueles telhados a fora. Das bolotas, para além das atirarmos inteiras para o lume de chão, onde estoiravam como bombas, também se faziam porcos, com a ajuda de pauzinhos de fósforos, que depois serviam para grandes brincadeiras. Mas voltando às tarefas domésticas, também não me safei de limpar louça e de fazer mandados. Era ir comprar, uma quarta de café ou de manteiga e coisas assim. Não estou nada arrependido e até louvo os meus pais, por me terem proporcionado estes conhecimentos e nunca me senti menos homem por causa disso, antes pelo contrário.
Mais um post onde sinto a diferença de idades. Nunca vi a minha irmã a fazer nadinha que só a mandassem fazer a ela! Acho até que quem punha a mesa fui sempre eu e não ela!
Tem piada ler o Zé Palmeiro, imagino muito bem essa infância. Creio que os meus sobrinhps devem pensar que as ervilhas nascem já descascadas com aparecem nos saquinhos do supermercado. Assim como o arroz, em vez de ser pequenino e branco, são verdes e maiozinhas, mas é a mesma coisa.
Esta vai dar direito a mais conversa...Depois mando.AB
Obrigada, mulher-de-mais etc...
É que há memórias que são pena desaparecerem juntamente com as ainda as têm. Por aqui sempre fica qualquer coisa.
Zé Palmeiro, é claro que também havia rapazes que faziam a cama e ajudavam as mães nalgumas coisas, para além dos «mandados». O que aqui a madrinha da Clara refere é toda uma mentalidade de época. É certo que se dizia dos rapazes que quando iam à tropa lá tinham de se desenvencilhar de algumas coisas, mas toda a atitude era um tanto diferente da actual.
Raphael, é mesmo para os raphaeis que eu imaginei o Era uma vez...!
AB, também calculei que tivesses que dizer a este respeito :D
Mas Emiéle, eu só contei contei o meu caso para vincar que também havia excepções à regra.
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