segunda-feira, dezembro 10, 2007

«O Caderno» da AB - Juanita

Sobre Distracções de Infância, recebi este texto da AB:

Vinham normalmente depois das festas de S. João. Quando já estava desmontada a feira e normalmente já estávamos no monte. A feira era para ir comprar aquelas magnificas bolas, pequenas, de prata e com elásticos que se prendiam aos dedos e iam e vinham, antepassadas dos iô-iôs. E os bonecos de madeira sentados sobre uma roda uma perna articulada para cada lado e a pedalar com o trim-trim da campainha ou ainda as galinhas que bicavam quando se rodava aquela espécie de raquete com uma bola em pêndulo para fazer peso, atada com fio vermelho. Vinham pelo cabeço acima na carroça com capota de pano e preparavam as coisas para a representação. Mãe, pai, tio e três crianças, dois rapazes e uma rapariga. Ciganos. Mandavam-se buscar bancos ou cadeiras e eles começavam, primeiros os homens com as guitarras e os cantares um flamenco bastardo que me fascinava e sei lá se eram os aiiiiii ou os cabelos muito negros que pareciam chicotes. Depois era a vez dos miúdos, o desenrolar do tapete, som de tambores e flautas e exercícios ginásticos com vénias finais. Por fim vinha Juanita. Mais alta que eu, bolero de cetim vermelho escuro sobre o corpinho moreno saia de folhos à andaluza e sapatos, meu Deus que sapatos, o que eu invejei aqueles sapatos de tacão e fita, desconformes ao pezito pequeno, cabelo com uma rosa de cetim sobre a orelha, comprido, comprido e liso até à cintura e a pose dos braços, o tilintar das pulseiras quando começava a fazer soar as castanholas e o corpo se requebrava naquele “tablao” improvisado perante o olhar da família grande e pequena porque "não convinha deixar os gaiatos sozinhos" nunca se sabe.”Saltimbancos”. ”Portinhas fechadas”. No final davam-lhes um lanche e uma cesta para o caminho, que o preço já tinha sido acertado antes, e vinha em ”sobrescrito”. E iam-se…
Ficava-me a imagem da Juanita, o sinal pintado, o meio sorriso o olhar adulto da Juanita .”Então gostaram?” ”Para onde vão avô?” ”Por aí”.
Por aí… Um dia, já na cidade, no portão de cima, vi uma carroça cheia de palha, dono lá mais para a frente, a dar de beber ao animal no bebedoiro da pracinha mesmo ao lado do portão. O “por aí” do avô teve a sua oportunidade e esgueirada por entre as grades meti-me na carroça entre a palha. Encontraram-me adormecida, provavelmente com o balanço, já na estrada para o Redondo, com o pobre do homem sem ter sequer ideia da carga que transportava. A Juanita tinha exercido o seu fascínio e ”por aí” é com certeza, ainda hoje, um bom sítio para se ir.
AB

16 comentários:

cereja disse...

(é um tanto estranho vir comentar um post do meu próprio bolg...)
É muito importante este escrito, para o conjunto do Era uma vez...
Como devem ter reparado, as memórias que aparecem nesta rubrica são de uma citadina. Alguém que nasceu e viveu em Lisboa e conhece o resto do país pelo que vê nas férias.
Os textos da AB, nesta parte mais recuada e infantil, dão a outra perspectiva. Se em Lisboa também havia saltimbancos (coisa que hoje desapareceu) todo o enquadramento era bem diferente.
De resto, se recordo os bonecos de madeira, e as galinhas a debicarem na tal raquete, essa das bolinhas com elásticos nunca vi, acho eu. Só os iô-iô mesmo.
Mas imagino esta AB aventureira a meter-se na carroça e ir «por aí». Se fosse hoje, pobre do desgraçado do homem da carroça - de acusação de rapto ninguém o livrava.

Anónimo disse...

Excelente.
Muito bem escrito, e uma descrição muito viva.
(que sorte teres este texto da AB, logo hoje que estás de baixa!)

josé palmeiro disse...

Bem, que dizer deste texto?
A AB, tem o condão de ter uma memória prodigiosa e uma capacidade de a colocar em escrita, magnífica. Lembraste-me as bolas de prata, com elástico, já perdidas na minha memória. Para nós, rapazes, eram óptimas para fazer de bolas de hóquei. A descrição da Juanita é muito conseguida, porque real. Lembro-me perfeitamente desses bandos ou melhor, "companhias" itinerantes, que nos deliciavam com os seus espectáculos. Lembro-me também do número da "cabrinha", que ao som do tambor ia subindo, subindo até atingir o equilíbrio em cima de uma latinha com excassos centímetros de diâmetro. Da trupe dos Bonecos de S.to Aleixo que, liderados pelo Mestre Talhinhas, fazia as delícias de todo esse universo que tu , tão bem, descreves. Lembro, também as "estórias", contadas pelo Sr. Velhinho, que ilustrava com sombras chinesas. Este bom homem foi empregado do Hospital de Estremoz e mais tarde foi para Évora. Um Mundo de recordações...

Anónimo disse...

Correcção Emiele-nasci e vivi em Evora até aos quatro anos de idade.E continuei até aos treze catorze a ir de férias a Èvora.Depois foi um outro Alentejo, tb. de férias que descobri.Com um olhar bem diferente.AB

Anónimo disse...

Sombras chinesas,sim senhor Zé Palmeiro, também iam a casa "Sombras chinesas".Mas creio que eram feitas, bem como algumas projecções de filmes ,pelo projeccionista do "modernissimo"Salão Central"...Cada um tem o seu Cinema Paraiso...AB

Anónimo disse...

Muito bom, estas memórias. Quer o texto quer os comentários.

Anónimo disse...

Parece um conto.
E, especialmente bem conseguido o final:
”por aí” é com certeza, ainda hoje, um bom sítio para se ir.
Temos de o encontrar.

Anónimo disse...

Completa na perfeição os últimos Cadernos. O mundo da infância, tão longe mas que pode estar tão perto.

Anónimo disse...

Há um amigo, que tem uma belissima canção que começa assim.
"Não me perguntem onde vou
os caminhos nunca acabam...e é alentejano.A cantiga tem o sugestivo titulo de "cantiga de um marginal do sec.XIX".Toda a gente conhece e é das minhas preferidas.AB

Anónimo disse...

Mas já agora e porque esta coisa da infancia é uma coisa tão estranha ainda Domingo um senhor chamado Didier Lelilian disse ou citou uma coisa belissima e terrivel:"le plus mort de mes morts c'est l'enfant que j'étais".Foi numa entrevista com o Garard Lenorman o "homem" de "Michele".AB

Anónimo disse...

Erro:Gerard.AB

cereja disse...

Que boa pontaria que teve a AB em me enviar este texto logo hoje onde o Pópulo não ia ter nada de jeito.
E interessante as recordações sobreporem-se com as Zé Palmeiro, por algum motivo são conterrâneos. E ele lembrou-se das «sombras chinesas» que também devia ser bem interessante.

A frase que citas é terrível, AB. Mas a infância, tal como os «outros mortos» só desaparece para quem a deixa esquecer. Enquanto estiver na nossa memória, tudo permanece. É aliás o que eu pretendo com esta categoria do «Era uma vez...» manter alguma memória do passado. E, naturalmente, da nossa infância.

saltapocinhas disse...

também brinquei com essas bolas com elástico!
serviam para brincar e serviam também como arma de defesa (ou de ataque!!!), já que eram bem rijas!
(por dentro tinham serrim, e eu gostava de as esventrar para as observar melhor!)

saltapocinhas disse...

as melhoras!
SANTINHA!!

cereja disse...

Obrigada Saltapocinhas.
Estou realmente melhor, hoje, mas...
Os espirros sem fim foram-se, mas claro que agora vem a tosse.
Quanto às famosas bolas devo ser eu que, como citadina, não me consigo lembrar. E recordo os brinquedos de madeira, das feiras...

Anónimo disse...

Eu como citadina?!!!!Ora essa!Então por acaso Èvora era alguma aldeia?Até a feira era no Rocio...Ai as citadinas de Lisboa!AB