Um Caderno de Capa Castanha XXIII – Passeios na cidade
Eu sei, madrinha, que conhece muito bem a velha Lisboa, melhor que muita gente. Já tenho pensado se isso não tem a ver também com um outro estilo de vida...? «Claro que sim. Por um lado temos de dar o seu a seu dono, e como dizes eu conheço bem a “velha Lisboa” e já nem por isso tão bem as novas zonas ou as periféricas. E nota que por periféricas falo de zonas como por exemplo Chelas ou Olivais que foram bairros que nasceram ou se organizaram na forma actual, já eu era crescida. Em criança o mais longe que eu ia era ao Bairro da Encarnação onde viviam amigos dos meus pais, e à época era considerado um Bairro Social. Mas, sabes Clara ? creio que a responsabilidade deste meu conhecimento de Lisboa vem sobretudo do facto de ninguém da minha família ter automóvel, as voltas mais longas eram de eléctrico, mas andávamos quilómetros a pé. Andávamos por gosto, sem nos custar nada.
Está bem, quando a volta era demasiado grande para as minhas pernas pequeninas, queixava-me um bocadinho, mas não era nenhum drama...!
Olha, como exemplo de passeio que dava muitas vezes, lembro-me de ir da casa dos meus avós, junto da Fonte Luminosa da Alameda Afonso Henriques, até ao aeroporto. Ida e volta a pé. Saía pela mão do meu avô, depois do almoço, marchávamos até ao Areeiro, e depois seguíamos pela Avenida do Aeroporto ao longo das vivendas que íamos apreciando. Chegávamos ao aeroporto e ficávamos ali, sentados num banco a ver chegar os aviões. Hoje parece um entretém um pouco saloio, mas na altura era interessante. Nem me passava pela cabeça que algum dia ia entrar dentro de uma daquelas máquinas... Mas ida e volta, sempre a pé, eram uns bons quilómetros, até se levava farnel para o caminho porque chegávamos já perto da hora de jantar.
E também íamos passear mesmo aos bairros antigos, como um prazer. Quase sempre com o meu avô. Por exemplo, tomava-se um eléctrico até à Baixa, e depois íamos pelo Cais das Cebolas, via-se a Casa dos Bicos, e lá se seguia devagarinho em passeio, para Alfama. Íamos subindo, vendo as vistas, escadinhas, uns becos, subíamos até à Feira da Ladra e, se eu estivesse muito cansada lá se tomaria outro eléctrico para voltar para casa, mas olha que nem sempre!
E também se ia à Baixa a pé. Nem era nada demais. Da Alameda descia-se a Morais Soares toda, Martim Moniz, Praça da Figueira, Rossio, e íamos apreciando toda a grelha pombalina da zona da Baixa, rua a rua, aproveitando por vezes para pequenas compras, ou deixar alguma coisa a concertar. Subia-se a rua Garret, Largo de Camões, rua da Misericórdia, até ao Miradouro de S. Pedro de Alcântara e aí talvez de apanhássemos o eléctrico 24 para voltarmos à Praça do Chile. Ou, então, fazíamos a volta das Avenidas Novas.
Saindo de casa descia e subia a Alameda e ia até ao Arco do Cego, depois zona de Estefânia onde viviam os meus outros avós, onde parávamos para fazer visita e às vezes lanchar lá. Mas depois continuávamos a andar, serpenteando por aquelas ruas na zona da Maternidade, São Sebastião, e voltávamos Avenida da República fóra, devagarinho, saboreando o passeio, até ao Campo Pequeno, e depois o Bairro Social do Arco do Cego, uma zona ainda com hortas onde se ia construir a Igreja S. João de Deus, e de novo na Alameda. Se conheço Lisboa? Assim, a pé, de passinhos curtos de sapatos nº 29, de mão dada com o meu avô, são recordações tão vivas que parece ter sido ainda hoje»
Clara
18 comentários:
Já cá volto lá mais para o fim da tarde...mas,Chelas "velha" e Olivais "velho" aquele que se organizava em volta da igreja e da R. da Condessa e da Igreja e coreto, que hoje ainda são visiveis, num pequeno larguinho onde existe uma optima tasca de grelhados,e de onde saiam as ruas dos "conselheiros"existiram até meados dos anos 70.Depois foram substituidas por construções do J.Pimenta a pior praga imobiliária que por aí houve e as palmeiras que ,na R.Conselheiro Lopo Vaz tinham uma presença extraordinária, estão hoje exactamente em frente da casa dos Bicos.Esse Olivais foi berço de uma burguesia endinheirada que tinha as paredes das suas casas pintadas por pintores da época como o Smith ou o Julião Machado.AB
Que dizer de uma descrição tão promenorizada? Só posso dizer que sim, que saudades, que linda que era Lisboa. Eu, doutra era, lembro.me nos anos sessenta, quando fui para Lisboa, depois de concluído o Liceu, andar a pé por tudo o que era sítio. Morava em Campo d' Ourique, e isso é que era andar, descobrir os caminhos mais curtos, conhecer as alternativas, isto tudo porque o dinheiro era curto e não dava para tudo e se tinha pernas, era para as usar. De qualquer forma, adorava e adora andar, de forma que o fazia com prazer e com um fim, era a maneira de saber como e onde as coisas aconteciam. Depois, mudei para a Gonçalves Crespo, ali ao Conde Redondo e perto de Veterinária, outra área, outras descobertas. Um enorme prazer, ler escritos tão belos.
Querida Emiéle,o teu «Caderno de Capa Castanha» vai ficando mais pessoal e humanizado e menos 'sociológico'.
Seguimos os passeios desta menina, de mão dada com o avô, e creio que vejo bem a cidade de então com os seus olhos.
Que grande!!!
E que bem que lhe deviam fazer estes enooormes passeios a pé. Mesmo para o avô - qual ginásios, qual quê!!!
Claro AB, a referência a Olivais e Chelas é tal como se apresentam hoje. Nessas épocas eram «subúrbios», e penso que a narradora, essa madrinha da Clara, fala apenas da sua experiência. Para ela, o mais longe que ia... era à Encarnação. De resto era o coração de Lisboa, apreciado, devagarinho, a pé que é como se vêem as coisas.
Zé Palmeiro - Campo de Ourique, ainda hoje é um Bairro muito especial. Todos são, é certo, mas como diria o Orwell aquele é mais do que os outros. Mantêm a sua individualidade de uma modo especial. O Conde Redondo já está muito diferente do que era no «teu tempo».
Mais um post para a colecção que se vai enriquecendo de um modo magnífico.
Concordo com a Joaninha, que este, parece mais "humano" se assim se pode dizer. Foi fácil repetir os passeios que a madrinha da Clara descreve.
E as fotos ajudam oh se ajudam!!! Aquele Saldanha...
Emiéle, tu desculpa, mas eu é que fiquei cansada só com a descrição desses enoooormes passeios.
Livra!!
Eu acredito (quem sou eu para por em dúvida as memória dessa senhora?) mas fiquei sem fôlego. Só o ir e vir até o aeroporto já é uma proeza!!!!
Ora aí está: nesse tempo não se falava em obesidade, pois não?
Fazem falta esses (hoje considerados longos) passeios a pé às nossas crianças ( e adultos também).
Certíssimo Méri! A mim choca-me ver a enorme bicha (ou fila como se diz hoje) de automóveis às portas das escolas e infantários de pais que vão levar os filhos à escola, quando tantas vezes moram na rua de cima. Mas para percorreram 10 metros vão sentados no banco estofado do carro...
OK, OK, há pouco tempo, eu sei.Mas para mim é outra coisa, é uma mentalidade que se instituiu.
Olha que má pontaria a minha! Venho atrás da dona da casa, e ela se calhar já cá não volta...
Fiquei um pouco com a Mary, cansado só de imaginar o tamanho dos passeios... livra! Por outro lado, com o trânsito automóvel de hoje isso tinha muito menos piada, a não ser um talvez o tal passeio Baixa - Alfama - Feira da Ladra.
Adorei as fotos!!! Genial.
A última é donde?
Estou a imaginar ali por detrás do Cais do Sodré, S. Paulo ou assim.
Enganas-te Raphael, ainda 'ando por aqui', como o outro :)
Aquilo que vês é Baixa.
Pretende retratar um cinema, o Salão Lisboa, conhecido como “Cinema Piolho”. Esse cinema creio que foi a primeira sala pensada para ser cinema. «Situava-se na Rua da Mouraria, entre as Escadinhas da Saúde, o Antigo Beco do Cascalho e a Rua das Fontainhas a S. Lourenço» reza a crónica. Portanto estás a olhar para a Mouraria.
Quem diria, heim?
Por acaso o Conde Redondo tem um enquadramento curioso.Hoje é palco de inumeras manifestações de travestis e prostitutas de mistura com uma população envelhecida que convive magnificamente com tudo isso.Experimentem ir a uma das leitarias das transversais ou muito cedo ou ao cair da noite e vejam...Lá mais para baixo quasi junto á R. de St.Marta vem o negócio das Sex shops com cartazes do mais divertido que há em termos de mitologia sexual.Mas no principio do seculo passado a zona era considerada de "gaioleiros"(a construção era em gaiola uma estrutura de época)e os construtores, apelidados de acordo com a construção, instalavam ali as suas familias de 2º, ou seja senhoras por conta ,das quais tinham filhos que legitimavam.Apesar disso a separação das águas sociais continuava a não desaparecer com a legitimação e as senhoras lá se davam entre si mas parava por aí ...a gonçalves Crespo por acaso foi morada de gente de teatro,algumas coristas e gente de bastidores ,costureiras de palco,por exemplo,ou até gente de claque.Era muito engraçada esta espécie de estratificação social à revelia da oficial...era a época dos "quartos independentes"uma forma de negócio que se por um lado servia os estudantes por outro mascarava outra realidade que tinha sido abolida por decreto,se não me engano de 62 que acabava com as casas de toleradas...AB
...e Cesário Verde já agora?AB
E vou bater na Emiele que me dá aqui tanto trabalho que nºão sei se tenho alma para a empresa..mas se calhar vale a pena.Qt. ao andar a´pé como sou alentejana as noções de tempo e de espaço são muito dilatadas (ou eram)coisa que muito assustava quem me acompanhava qd. por ex.eu dizia "é logo ali,além"(expressão que nunca ouvi nenhum lisboeta dizer)porque achavam quw iam andar ruas e ruas...e era verdade.Só que para mim era perto.AB
Gostava de realçar a importância que o eléctrico tinha em Lisboa que cada vez é mais residual.
Belo texto e belos comentários.
Olá Pedro! Sempre vais passando por cá, embora caladinho, muitas vezes. É uma pena o lento fim dos eléctricos. Nessa época era um transporte muito usado, sim.
AB - já calculava que estas memórias te espicaçassem... Ainda bem que tens muito que contar. E é certo que és uma andarilha despachada, mas não sei se tem a ver com a região natal.
O Conde Redondo à noite é completamente invadido por travestis, ainda ontem o pude comprovar na Bernardim Ribeiro. Nem conseguia chegar ao carro, quase!!! Parecia que tinha caído num filme de Felini...
AB, minha comprovinciana, o que dizes, da rua que foi minha, durante algum tempo, é uma verdade irrefutável. A zona continua, exactamente aquilo que era só que, travestido. Lembro-me bem que, da janela do meu quarto, independente, ficava a porta da Pensão Serra da Estrela, e da festa que era, assistir às entradas e saídas, constantes das utentes, com os seus clientes, chegávamos a fazer estatísticas.
Emiéle, Campo D'Ourique, era e é, na verdade uma coisa àparte, concordo inteiramente, talvez por encimar uma colina, muito bem definida, e as suas gentes serem muito especiais. eu lembro-me de considerar que era uma "Aldeia", no meio da cidade.
E tudo isso com a próximidade de uma zona altamente aristocrática que era o Paço da Rainha....mas desandando lá se ia até S.Lazaro e daì a Almirante Reis e ao Intendente era um salto.Lá em baixo quasi na esquina da R.de S.lazaro com a Almirante Reis esteve um dos mais emblemáticos sitios do "bas-fond"lisboeta que dava pelo nome de Bolero.Tinha uma orquestra de ceguinhos e teve como porteiro uma das personagens mais curiosas dde Lisboa.Chamava-se "Beringela" era amigo do Belarmino do filme do Fernando Lopes,foi guarda costas do Salvação Barreto e fez "O recado" do Fonseca e Costa.Morreu há anos de gangrena,a boémia bebida até ao amago,alimentado no refeitório da Tóbis ou no da RTP por amigos das noites e dos copos.Trazia às vezes consigo outro amigo o João Franco,rapaz fugido cedo á familia,de um humor corrosivo e altamente inteligente e que é o boémio que mais casas de banho de cafés conhecia em Lisboa pelo simples facto de nelas dormir depois do fecho,a gabardina ou o casaco encostados ao assento dos sanitários.A alternativa eram as "casas de corda"a última existente era ali ao Fala-Só,um prédio arte nova lindissimo,governada por um galego.E a Paula outra "casa de corda"onde de quando em vez também pernoitava o Pacheco.Não é só uma "Crónica dos dias tesos"é toda uma cidade que pulsava aos olhos de adolescentes para quem a palavra preconceito dizia pouco e para quem as rigidas regras familiares estavam em derrocada total.Já por volta dos anos 80 o Bolero voltou ao seu nome original"Duina Bar"Depois fechou definitivamente quando a esquerda se foi "jamaiquizar"como diria o EPC e hoje é uma loja de cintas e soutiens fatelas o que não deixa de ter a sua graça.Do Pinto, o gerente,o homem que fiava as ceias de bacalhau das madrugadas não sei nada e da Lurdinhas que deve ter iniciado vários dos meus amigos e que dizia "coitados,estão por aí sózinhos,querem é um ombro para dormir"depois de um depoimento para um filme do Joáo Cesar que se chamava "E que farei eu com este livro?"não mais ouvi falar...mentira,vi-a uma vez á mesa de familia de um amigo também já ido porque precisava de qualquer coisa e as noites eram solidárias.AB
Tenho uma divida pessoal com o Beringela e o João Franco.Uma divida de grande ternura e solidariedade.Hei-de aproveitar o espaço da Emiele e fazer-lhes dentro daquilo que puder a homenagem que merecem.(O João está vivo embora doente).AB
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