domingo, outubro 14, 2007

Um Caderno de Capa Castanha XVII- leituras

«Como eu já te tinha contado, quando falei na escola, aprendi a ler muito depressa e bastante cedo. Das minhas ‘competências escolares’ a leitura foi sem dúvida a número um. Fui muito estimulada pela família, é certo. Pais intelectuais, assim como os avós, a palavra escrita era-me muito familiar, cresci rodeada de livros. Muito cedo a leitura se tornou o meu maior prazer!
Recordo com toda a nitidez o meu primeiro livro e como o obtive.
Tinha ido a uma Festa de Natal para crianças e no final distribuíram prendas. Havia brinquedos para os mais pequenos – bonecas, bolas, cadernos com bonecos de estampar, lembro-me bem – e livros para os mais crescidos. Olhando para o meu tamanho, já me estendiam uma boneca quando a minha mãe interveio, dizendo que me dessem um livro porque eu já sabia ler! Fiquei envergonhada por chamar a atenção e ao mesmo tempo vaidosa. Voltei para o lugar toda corada e a segurar um livrinho pequenino, da colecção «Joaninha», chamado A Burrinha Toleirona. Olha que ainda hoje sei de cor o primeiro parágrafo dessa história, Clarinha.
O deslumbramento de ler, (sozinha !), um texto sem ser dos que conhecia do livro de leitura, foi das sensações mais felizes da minha vida. Imagino que isso seja o que sente um passarinho quando abre as asas a primeira vez e desliza pelo ar… «o mundo é meu»!
Depois dessa estreia, muitos outros livros se seguiram que os meus pais cuidaram disso. A colecção «Joaninha», colecção «Manecas», e a colecção Azul com capas de cartão e livros mais ‘
importantes’. Foi a minha apresentação ao mundo da Condessa de Ségur e àqueles meninos tão inocentes e bem-educados. Tudo muito correcto, muito certinho.
Li também, nessa célebre «Colecção Azul», dois romances que fizeram chorar todas as meninas do meu tempo: «A Princesinha» e o «Pequeno Lord». Li-os vezes sem conta, porque como já sabia que acabavam bem, regalava-me em confirmar que os maus eram bem castigados e os bons ganhavam.
E ainda, nessa mesma famosa colecção encontrei a escritora portuguesa Virgínia de Castro e Almeida que me fez conhecer «O Céu Aberto» e «Em Pleno Azul». Histórias marcantes que me ensinaram a ter interesse pela arte, pelas viagens, por outros países. E depois, da mesma autora, passei de uma visão realista (?) para a fantasia cheia de simbolismo da «D. Redonda de a sua gente», com a D. Maluka, o Monstrengo, a Zipriti, e as fabulosas «Aventuras de D. Redonda».
Tardes inteiras que passavam sem me dar conta, absorvida por esses livros sem bonecos mas que eu ‘ilustrava’ abundantemente com a minha imaginação.
Olha, Clara, sobre isto tenho tanto para te contar que não se esgota nesta conversa, temos de a continuar para a semana...»
Clara

10 comentários:

Anónimo disse...

Estou aqui a sorrir como uma parva.
Que saudades....

Anónimo disse...

Pois é Emiéle, por isto é que o Pópulo tem mel. Ando sempre cá caída, porque sei que acontecem posts destes...
Obrigada por o teres publicado.
(e pelos vistos 'para a semana há mais'...)

josé palmeiro disse...

Este, para mim, veio mesmo a calhar.
Os livros, sempre me acompanharam e acompanham na minha vida. Também tive a possibilidade, por sensibilidade maternal, de conviver com eles, muito cêdo, depois o facto de ter uma tia, a minha tia JOANA, permitam-me recordá-la, livreira, contribuíu decisivamente para essa convivência e partilha.
A importância do contacto inicial, muito cêdo, com os livros, em suporte papel, dão-nos, as ASAS, de que falas. Depois, para lá dos meus filhos que continuaram o hábito, foi uma vida inteira a contactar directamente com essa realidade, nos sítios e lugares, mais reconditos, do Alentejo e Algarve, locais onde desenvolvi a minha actividade de "fomentador", de leitores e promotor da leitura. Recordáte-me, com as imagens livros que emprestei, até à saciedade. O meu primeiro livro, não me recordo o nome, mas recordo que tinha um menino articulado, na última página que nós colocavamos direito, antes de ler e que depois ao folheá-lo, o menino mudava de roupa consoante a história que estava agregada. Devo tê-lo ainda, pois os meus filhos ainda o fruíram, mas neste inferno que é ter coisas espalhadas pelo Alentejo, Algarve e Açores, não sei onde estará.

Anónimo disse...

Oh também me fartei de ler e reler e chorar baba e ranho com a Princesinha e o Pequeno Lord. E tenho-os nessa encadernação azul, herdados de Mãe e tias. E mais todos os da Condessa de Segur e da Virgínia de Castro e Almeida. Há meses, encontrei o Céu Aberto e Em Pleno Azul e comprei-os, para os reler...muito Estado Novo, claro, mas algumas coisas permanecem bonitas. Beijinhos e bom fim de semana!

saltapocinhas disse...

na minha casa não havia dinheiro para livros, mas eu vingava-me quando ia nas férias para casa da avó e onde tinha os livros dos primos e também - principalmente - na biblioteca itinerante da CG onde trazia o máximo de livros que o velhote deixava (creio que eram 5) e convencia a pequenada da vizinhança a irem também à biblioteca para ler os deles!

Anónimo disse...

Tal qual.Os mesmissimos livros e mais "Os desastres de Sofia","As Meninas exemplares" e "As Férias".E os SandoKans...E o SR.Moreira,que alugava livros na papelaria dele,( a mesma onde se comprava o "Cavaleiro Andante" e os cromos das "Raças humanas")que se traziam às escondidas para casa ("sabe-se lá quem é que já andou com essa porcaria na mão")..para seguir as aventuras do Cavaleiro Lagardére...AB

cereja disse...

Calculei que o post de hoje caísse em cheio nos interesses do nosso amigo Zé Palmeiro - livros e bibliotecas é com ele, por gosto e profissão... E twer tido uma tia livreira decerto que ajudou.
A Joaninha e a Mary identificaram-se com a narradora ela comoção - é que «voltar atrás» nestas coisas comove de facto. E os romances aqui citados foram lidos por mais de uma geração, como é evidente.
Catarina, tu bem dizes que vais passando pelo Pópulo, e de vez em quanto provas. :D Estes romances, os da Virgínia de Castro e Almeida, ( como dizes bastante 'estado novo') e também os imensos da Condessa de Ségur que li quase todos e onde também os valores eram bem conservadores, apesar de disso faziam-nos sonhar com um mundo diferente da nossa escola e da nossa rua. Também, como tu e a entrevistada da Clara, chorei baba e ranho, quando a Princesinha interrompe a festa de anos para saber que o pai morreu, ou recebe uma esmola no meio da rua. Tenho a imagem presente...
Saltapocinhas, que esperta, heim..!! Mas para bibiotecas itenerantes fala ali com o Zé Palmeiro. Quanto a mim, lá em casa não havia grandes luxos, mas tal como a pessoa que fala aqui, também fui filhe e neta e talvez bisneta de intelectuais, e os livros já vinham de gerações atrás...
AB - amanhã vou 'postar' a mensagem que mandaste com o teu testemunho. Quanto a este comentário, lá em casa não havia essas esquisitices com os livros em 2ª mão; lembro-me bem de ter ido com o meu pai à Barateira ainda bem miúda, mas percebo que tu tivesses que ter cuidado com isso :) Olha que até os Desastres de Sofia, onde ela era mais 'destravada', mesmo assim a base era de meninos super-bem-comportados. Mas a gente gostava imenso!

Anónimo disse...

Não eram livros em 2ªmão eram alugados mesmo.A tostões.Mas exactamente o maravilhoso daquilo era já terem passado por muitas mãos.Quanto à experiencia do Zé Palmeiro tb. não vá sem resposta pq.as itinerantes da Gulbenkian na adolescencia de férias alentejanas sabiam a salvação...De resto histórias com Bibliotecas,formação de bibliotecas,itinerantes e fixas tb. não tenho uma experiencia nada má...Galveias debaixo da chefia Silva Pinto é do melhor que se pode arranjar....AB

cereja disse...

OK, baralhei duas coisas.
Tenho a experiência dos alfarrabistas e da «segunda mão» (aliás a minha biblioteca é em parte feita pela «segunda mão») e tenho também desses livros alugados. Havia, perto da minha casa, uma espécie de tabacaria com um dono que era uma figura extraordinária - uma barba branca que quase lhe chegava à cintura e um ar meio tresloucado - que alugava livros. De quando era pequena já nem me lembro do preço, mas bastante mais velha 'aluguei' imensos policiais, que lia e devolvia passado o fim-de-semana. Muito prático!

cereja disse...

Esqueci-me da tal questão do preço. O que recordo é que pagava vinte e cinco tostões pelo livro, quando o devolvia recebia o troco, quinte tostões, creio. Portanto o que faltava era o aluguer; se não devolvesse o livro era com se o 'comprasse em 2ª mão'
O esquema não era mau...