domingo, outubro 28, 2007

Um Caderno de Capa Castanha XIX

«Tenho reflectido, Clara, em que as memórias que te ando a contar podem parecer muito desorganizadas. Mas combinámos que eu ia falando conforme as coisas me fossem ocorrendo e portanto não obedeço a nenhum esquema, tanto falo da minha escola, como das férias, como das distracções ou das leituras. Se parece uma manta de retalhos (e parece mesmo) a culpa é das curvas que este riacho da minha memória vai traçando. Como comecei a falar dos livros que me marcaram, agora já ia por aí fora para a adolescência.
Mas creio que faz mais sentido manter-me mais uns tempos nos anos 40, sobre os quais há ainda tanto que falar.
A música tem hoje um papel muito importante na nossa vida, sobretudo entre gente mais jovem. É fácil ouvir-se música. Não me julgues cínica, mas olha que hoje em dia é mais difícil ouvir-se o silêncio: a TV está sempre ligada até em salas de espera, os transportes públicos têm música, muitas lojas têm música de fundo, os restaurantes, os automóveis, e a maioria dos jovens anda com a música pendurada ao pescoço… Nada de isso acontecia no meu tempo.
Não quero dizer que não se gostasse, é claro. Mas como te expliquei nem toda a gente tinha telefonia, era um investimento já para a classe média e, menos ainda, música gravada. Havia discos de 75 rotações que giravam muito depressa e acabavam num instante, mal davam para uma cantiga não se podia gravar lá uma área completa de música clássica. Mas, mesmo essas grafonolas, eram raras, não havia nem na minha casa nem em casa nenhuma onde costumasse ir.
Ouvíamos música no rádio, é certo, e em cantigas que passavam de boca em boca. As revistas tinham um papel importantíssimo nesse campo, canção de revista que caísse bem no ouvido tinha audiência para anos…Também havia as marchas, sem o aparato de hoje, mas as suas cantigas continuavam a cantar-se durante todo o ano e, para além de fadistas que tinham muita importância, cantávamos sobretudo canções de cantores românticos. Francisco José, ou Tony de Matos, ou vozes femininas como Mª de Lourdes Resende, Milú, Maria Clara .
Hoje esqueço-me de quem cantava, o que me lembro melhor é das cantigas. Porque como te disse, uma vez que os sons só nos chegavam pela telefonia, se queríamos música… cantávamos. Mesmo horrivelmente desafinada como sempre fui, lá ia cantarolando, sobretudo o que ouvia à minha mãe, que por sua vez ainda trauteava êxitos de revista da sua mocidade: Dia da espiga ou por exemplo as Camélias e, o que eu achava graça, o tal Não se casem, não, rapazes! :D
A rádio também nos dava o Teatro Radiofónico, muitas vezes até com as vozes de actores «a sério» e ouvíamos programas muito famosos como a APA e «O Comboio das Seis e Meia» de Igrejas Caeiro ou Os Parodiantes de Lisboa. Todos conversávamos sobre esses programas, porque se a escolha não ia muito além dessas hipóteses o certo é que ninguém se queixava, nem nos passava pela cabeça pensar que isso seria pouco.»

6 comentários:

Anónimo disse...

Caríssima, só li o texto e espreitei as fotos. Ouvir as músicas só mais para a tarde, que apesar da hora estar diferente tenho coisas a fazer.
Continuam posts de 5 estrelas!
E percebo que nesta caso seja mais difícil encontrar ilustrações.
Quem dos mais antigos não se lembra do Teus Olhos Castanhos, ou Nem às Paredes Confesso, ou a Cantiga da Rua, ou o inevitável Alcobaça, ou «O meu Amor é pequenino como Um grão de Arroz» (não sei se é assim que a cantiga se chamava...

Anónimo disse...

Claro, O Comboio das 6 e meia.
Uma nota de quinhentos não se pode deitar fóra!

É muito giro porque cada um de nós deve recordar as canções que as nossas mães cantavam. (ou avós, ou tias...) e no meu caso eram outras. O pior é que sou incapaz de as reconstituir.

Anónimo disse...

Emiele há por aí uma confusão:em vez do "Rapazes cuidado"aparece uma gravação do Fado falado do Villaret na versão do Perry.AB

josé palmeiro disse...

De que te foste lembrar. As canções da minha infância, a minha mãe cantava-as todas, na perfeição e eu ainda as reconstituo, na sua maioria, as que citaste e as da Joaninha e maisoutras tantas como as do Rui de Mascarenhas, do Tristão da Silva, por exemplo. A Maria da Graça, que depois foi para o Brasil como o Francisco José, e por lá ficou, tendo vindo cá uma vez, já com o sotaque brasileiro. E as rádios eram os "Emissores Reunidos de Lisboa"; a Rádio Graça; o Rádio Club Português; o Rádio Peninsular; a Rádio Renascença e a inefável Emissora Nacional e a sua escola de cançonetistas.
Prometo colocar, de forma visível, na minha "Sesta", a fotografia do aparelho de Rádio da casa dos meus pais, que neste momento está no bar da minha filha, em Faro, para decoração.

Anónimo disse...

Tu és um inferno.Embora das coisas abordadas neste post eu por exemplo já tenha naqueles meus comentários falado de algumas(revista,passatempos APA e comboio das 6 e meia)há tanto para dizer.Hoje tenho pouco tempo,que o nosso querido escritor de policiais com o peudonimo de Henrique Nicolau faz anos(não é uma indiscrição é uma homenagem)e dá uma festa para amigos e tenho de, enfim,"refaire ma beauté"para condigamente me juntar ao grupo.Mas acrescentarei comentários como vai sendo meu costume durante a semana.Prometo.O que não prometo é que à maneira da Clara sejam ordenados,mas ao sabor da memória e do que os temas forem levantando.AB

cereja disse...

Upsss!!!
Realmente AB, tirei a canção da faixa ao lado!!! Agora já está certo... é o que faz não conferir o que se escreve - faço muito isso e não tenho emenda.
De resto, fico bem contente se fores acrescentando «coisas». É um tema muito vasto, como se sabe, e nesta caso cada recordação é preciosa. Ouvir rádio era a distracção dessa época, quando começaram os famosos folhetins radiofónicos, a famosa história da coxinha...