Sempre mais ou menos depois do lanche, lá na casa grande. Porque deve ter sido aí o princípio. Não um primeiro livro, nem sei bem se era só o livro, os livros, mas todo o ambiente. As estantes grandes de gradinha, a secretária com o candeeiro de abat-jour de vidro verde e sobre ela o pesa cartas de cobre, com o pêndulo a oscilar no marcador ao toque do dedo mínimo, que bom que era fazer aquilo. O avô (sempre o avô) sentava-se então na cadeira austríaca de balanço (desapareceu há dois Natais com o peso de um conviva mais alentado e a impossibilidade declarada de restauro) e puxava-me para o joelho. Depois abria livros e folheava-os com os dedos grandes e amarelados do tabaco. Era o desfile de gravuras, à pena, a ilustrar a história do Marquês de Pombal, obra encadernada em vermelho, e lá estava a fogueira onde tinham queimado o Padre Malagrida as chamas enroladas e por baixo legendas ou então “As pupilas do Senhor Reitor” ilustradas a aguarela pela Roque Gameiro ou ainda aquele fantástico livro todo verde e dourado, numa língua desconhecida, está ali, ”Trough the Kalahari Desert” ou ainda “Autour du Drapeau” par le general Thoumas,200 illustrations de Lucien Sergent, está ali, junto com o álbum do Grand Salon de Paris. Grandes livros vermelhos as letras douradas as capas gravadas… Precisam restauro, as lombadas sobretudo, agora que já não há janelas de meia lua a deixar passar o sol do fim da tarde a nimbar o instante mágico do passar da folha e do cheiro do tabaco turco…
AB
11 comentários:
Este «caderno a duas mãos» está óptimo.
Pena de ter de passar aqui a fugir!
A AB, teve a sorte de ter vindo de um berço aristocrata, de "boa cêpa". Havia efectivamente essas famílias que ela, tão bem, descreve e ainda bem. Mas, atenção, não eram a regra. Nem todos os que tinham um bom índice económico, eram como ela descreve, eu, tive a sorte de conhecer alguns que recordo com saudade e que me ajudaram muito, com a sua amizade e respeito, mas a regra era outra, por isso hoje temos a sociedade que temos. Sorte, a dela, de ter essa ascendência, e a nossa também, por podermos ler os testemunhos, que nos deixa.
Que bem escrito e sugestivo este texto. Imagino bem o ambiente que a AB descreve. Claro que como diz o Zé Palmeiro seria uma elite, mas o ambiente que aqui é descrito é maravilhoso.
Exactamente ´Zé Palmeiro o problema estava no que chamas "indice económico".Realmente,pouco depois acabou...AB
É certo que a narração tão bonita da AB envolve todo um ambiente do tal «berço», mas se a generalidade da população não vivia assim, podia ter-se o gosto pela leitura sem muito dinheiro - vejam o que disse a Saltapocinhas no post abaixo. E nas famílias que cultivavam esse gosto os livros eram muito estimados, forravam-se a papel, arrumavam-se bem, e eram apreciados por vários membros da família.
Evidente,Emiele.Aliás o gosto pela leitura no caso da minha gente não contaminou a todos por igual...e no entanto, do outro ramo da familia ,em que os recursos e a "cêpa"eram diferentes, os livros e o gosto pela leitura foram coisas sempre presentes.AB
Emiéle, como eu sei isso.
Primeiro enquanto criança e depois, como adolescente tive o privilégio de conviver, com muitos livros. Ter a tia Joana, e a sua livraria, sempre à mão, poder conviver com os mais velhos, os que já tinham o hábito da leitura, foi a minha iniciação. Depois, conviver com a heroicidade que era, receber e guardar, muito bem escondidos os livros que de ante-mão, se sabia ou desconfiava virem a ser apreendidos, pela Pide, que depois eram cuidadosamente distribuídos por alguns leitores, muito especiais, todo esse mundo, tive a felicidade de viver e nele me formar, como ser humano.
Depois toda a minha vida profissional, foi fazer despertar o interesse e o gosto pela leitura, dando a conhecer autores e vendo com orgulho e prazer, muitos leitores precorrerem o caminho das luzes. Não era o "velho" de que a "Raposinha", fala. Trato-a assim, exactamente pela referência literária, que o seu nik, me sugeriu. Não tenho dúvidas nenhumas em subescrever que só não lê, quem não quer, mas que uma infância e adolescência, vivida com livros, ajuda e motiva a despertar essa consciência. Reforço o que dizia Azeredo Perdigão, o continuador de Calouste Gulbenkiam, quando da inauguração da rede de Bibliotecas Itinerantes e Fixas : " Quando o homem, por qualquer motivo, não procura o livro, não se interessa pelo livro e não busca a sua convivência, o livro tem de procurar e interessar o homem para o servir, quer instruindo-o, quer recreando-o". Foi este o lema que adoptámos e que seguimos, permanentemente.
O ter passado a correr de manhã não quer dizer que não pensasse logo em voltar mais tarde. Porque estes posts fazem pensar. Claro que o clima familiar tem um peso enorme, mas todos nós sabemos que não é o bastante. Digamos que quando não há esse clima a coisa é mais difícil, mas todos conhecemos famílias onde os pais pareciam a leitura e os filhos, até por oposição, detestam! mas o interesse destes posts, é que vem também lembrar que naquela época, para além de brincar, havia muito poucas ocupações. Nada de TV, nada de consolas, nada de internet...Os putos até para se distrairem iam lendo!
:)
Estou a brincar, é claro, mas não completamente.
Gralha - apreciam e não 'pareciam'.
Um magnífico post intimista.
Como disse ali a nossa Joana o «caderno» a duas mãos anda óptimo.
mais um prémio, pois então.
ficou com um abraço no Realejo.
bjs.
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