domingo, setembro 23, 2007

Um Caderno de Capa Castanha XV - Vestuário II

E quanto à roupa das senhoras…?
«Esse ponto, sim, era mais importante do que o das crianças ou o dos homens que também obedeciam à moda, é claro. Para focalizares bem a época é importante, Clara, que percebas que na vida corrente existiam muito mais normas e muito mais rígidas do que na actualidade. Nós regíamo-nos muito pelo que «se deve» fazer, ou usar, ou dizer. Havia um 'espartilho social' invisível mas ao qual não se pensava fugir, porque se tinha sido educado dessa forma. Por um lado, era mais visível a diferença de classe social nessa época do que hoje. Uma mulher do povo ou uma criada não vestia do mesmo modo que uma senhora da burguesia - a classe social via-se logo, ao longe. E as senhoras andavam muito mais cobertas do que hoje em dia, para além do vestido e casaco, meias e sapatos, não se saía sem chapéu e luvas fosse de Inverno ou Verão. Para a minha avó esquecer-se das luvas eram tão impensável como seria eu hoje esquecer-me dos sapatos! E, durante a década de 40, também não saía sem chapéu, mesmo que fosse quase «uma amostra» de chapéu. Lembro-me de ver a minha mãe, que era mais liberal nos seus hábitos, nos finais desses anos só usar uma boina, mas… a cabeça tinha de estar tapada. Aliás, quando o chapéu começou a desaparecer vieram os lenços de cabeça, mais práticos, mas que tapavam o cabelo na mesma. E as luvas, de Verão até podiam ser de renda, mas uma senhora tinha de andar de luvas, ponto final.
E a moda era, como disse, rigorosa. Se um ano as saias fossem pelo meio da perna, todas as bainhas desciam, se no ano seguinte fosse só abaixo do joelho, subiam todas. As costureiras adaptavam os vestidos de um ano para outro, porque ‘parecia mal’ usar um vestido «errado» com a altura da baínha trocada...
Por outro lado também havia um código rigoroso do que fica bem ou fica mal. Certas cores não se misturam, o azul e o verde, o vermelho e o verde, por exemplo, porque se ficava «vestido de bandeira». E certas cores muito vivas também só se devia usar uma de cada vez, se a blusa era vermelha a saia seria cinzenta ou azul escura. Assim como era de mau gosto misturar padrões, não se ia usar pintas com riscas, ou com quadrados, ou com flores. Se uma peça de vestuário tivesse um desenho a outra devia ser lisa, ou o mesmo tipo de padrão. Havia normas rigorosas para tudo isso, e aprendia-se quase automaticamente porque era o que todos faziam.
E agora vamos ver: sapatos, importante e também se seguia a moda. A toillette de uma senhora começava pelos sapatos! Podia não ter muitos pares, uns mais práticos e uns mais elegantes, já podia ser. Depois as meias de seda, muito esticadas, presas às ligas ou ao cinto de ligas e mais vulgarmente à cinta (aparelho de tortura que desapareceu hoje, mas ainda vou falar nisso) A costura da meia tinha de estar direitinha como um fio de prumo. A meio da década começaram a aparecer as meias de vidro, muito fininhas e transparentes, por isso se chamavam «de vidro», que já tinham fibra não era só a seda. E também muito esticadas e com a costura direitinha.
Os fatos eram sobretudo tailleurs - quanto melhor a modista melhor o corte e todas as senhoras os usavam. Ou vestidos com um casaco de abafar por cima, se estava mais frio. Depois luvas, chapéu e carteira de mão. Chamaria a atenção pelos piores motivos quem saísse à rua sem estes atavios.
Claro que também havia os vestidos de «andar por casa», de um tecido menos bom, ou aproveitando os mais usados. Porque a norma para as crianças, também se fazia sentir nos adultos – aproveitava-se tudo, o desperdício era um defeito bem grave».
Clara

7 comentários:

Anónimo disse...

Parece outro mundo!
Mas está muito bem isto essa 'tirania' do parece mal. O que é curioso que hoje ainda se vê, mas «entre pares». Reapara que sobretudo adolescentes fazem ou evitam fazer coisas variadas nem tanto porque gostam mas porque «todos fazem».
Afinal a moda é isso...
Contudo hoje, se alguém quizer ir contra a moda não é olhada de lado.
( estou interessada se a entrevistada for falar na tal roupa interior, cintas etc... ainda usei disso e realmente hoje custa imaginar como parecia natural uma pessoa passar o dia apertada e se habituava)

Anónimo disse...

Dizem aqui uma coisa interessante: realmente essa distinção tão nítida da classe social atravez da roupa.
Hoje, por um lado há imitações, por outro liga-se muito menos.
Contudo, contaram-me há dias uma história sinistra: uma pessoa claramente carenciada, depois de uma entrevista com uma assistente social viu-lhe recusado o subsídio porque levava vestido qualquer coisa de marca!!!! Como é possível? Primeiro, saberia a senhora dona assistente social se aquilo era mesmo verdadeiro, ou comprado na feira de Carcavelos? Segundo, e se a «peça do crime» tivesse sido dada por uma senhora a quem já não servisse? Como é possível tomar uma decisãopor um 'sinal exterior de riqueza' tão ténue como esse...

josé palmeiro disse...

Correcta a descrição temporal da moda. No entanto e como diz a Gui, hoje, esse maldito costume de avaliar os outros pelo que vestem, ainda faz parte do nosso quotidiano.
Há contudo um iten que gostava de realçar, o aproveitar as coisas. Na verdade, tudo se aproveitava e até os hábitos mais corriqueiros, para isso contribuíam, senão vejam. Ao deitar, lembro-me muito bem, as calças eram dobradas pelos vincos e cuidadosamente colocadas num bengaleiro ou nas costas de uma cadeira. Os sapatos ou as botas colocadas direitas e com as meias bem colocadas, com o promenor da meia dereita passar a esquerda e assim sucessivamente, hábitos, que se propagam pelos tempos fora...

Anónimo disse...

Bom...isto dá pano para mangas!Não era só o que se vestia que defenia a condição social mas sobretudo o como,a postura...Ainda agora antes de chegar aqui estava eu atirada ali para cima de um sofá a ler uma coisa e pensei que se por um acaso eu alguma vez tivesse entrado na sala e visto a minha mãe como eu estava teria com toda a certeza pensado-"PASSOU-SE".E terei muito a dizer sobre este post mas não hoje .Por hoje direi que me veio á cabeça primeiro uma lenga-lenga por causa dos padrões:"às pintas para pessoas distintas,às bolas para pessoas estarolas,às riscas para pessoas ariscas",depois a velha rábula"com um vestidinho preto eu nunca me comprometo"e ainda uma velha cantiga de revista que tinha o seguinte refrão"E a sopeira de Famalicão já vai ao Negresco cear com o patrão".AB

Anónimo disse...

Sobre o vestidinho preto-era obrigatório num guarda roupa de senhora-bem como um tailleur preto.Sobre o refrão da cantiga - e pegando na história tristissima que o Gui conta,duas coisas :"a sopeira"jamais se conseguiria fazer passar por outra coisa mesmo indo ao Negresco... e quando se davam coisas às criadas jamais se davam aquelas que "lhes dessem ideias"ou seja ,nunca se dava mesmo usada ,roupa que fosse distintiva da classe a que se pertencia "porque isto não é para elas","não sabem usá-las".Atenção que esta noção de classe não tinha a ver com o dinheiro,porque na maneira de vestir havia um desprezo enorme pelos "novos ricos"os "patos bravos"e as suas exuberancias.AB

josé palmeiro disse...

Oportunos, os esclarecimentos da AB.

cereja disse...

Pois é, AB. estas crónicas são apenas «pontapés-de-saida» para lembranças que venham à memória. São temas inesgotáveis, como se sabe.
Quanto avaliar a pessoa pelo que veste, se calhar todos fazemos um pouco. Quantas vezes vemos uma pessoa e pensamos de nós para nós «mas aquela não se enxerga? não tem corpo (ou idade, ou altura, ou sei lá o quê) para vestir aquilo!» O que creio que se passava dantes é mais o que a AB refere aqui, é que certo tipo de roupa nem se dava às criadas porque como ela disse «lhes podia dar ideias» ou elas «nem sabiam vestir aquilo»
Diferente da história que a Gui contou e cujo modelo eu conheço. Um pedinte deve andar vestido de pedinte, é claro. Eu podia contar histórias exactamente ao contrário, pessoas que quando vão receber o subsídio se vestem pior do que o costume. Elas lá sabem como pensam as senhoras assistentes sociais!