domingo, setembro 16, 2007

Um Caderno de Capa Castanha XIV - VestuárioI

Uma questão: quando se pensa nesses tempos imaginamos logo que a maior diferença com os dias de hoje estava no modo como as pessoas se vestiam. É verdade?
«É verdade, sim. Nesse campo a distância é grande. E isto vai dar conversa para muito tempo, será melhor dividir por fases, hoje falo-te só do meu ponto de vista de criança, aquilo que eu própria vestia e que para mim era muito importante, mas é claro que quando se pensa em ‘moda’ é aquilo que a minha mãe ou avós usavam. Claro que as meninas deviam estar bem vestidinhas e havia regras, mas nada que se compare com a moda infantil que existe hoje.
Para começar, nada de pronto-a-vestir! Nem se imaginava tal. As senhoras, se fossem da alta sociedade e tivessem bastante dinheiro até poderiam usar criações de grandes costureiros que, exactamente por isso, eram peças únicas. Na sua grande maioria as mulheres iam a modistas ou a costureiras ou até, se tivessem muito pouco dinheiro, costuravam a sua própria roupa. Mas isso, conto-te da próxima vez.
Os meus vestidos eram feitos em casa. No meu caso, ninguém me pedia a opinião até já ser bem crescida. Quando se achava que eu estava a precisar de um vestido, a minha mãe ia a uma loja de fazendas e comprava um tecido de que gostasse para mim (há variedades de tecidos de que nunca mais ouvi falar, o tobralco, o piquê…) aparecendo em casa com o embrulho. Uma costureira, que ia lá a casa uma vez por semana para os arranjos necessários, combinava o feitio com a minha mãe e, quando muito, mostravam-me o desenho dizendo «Vai ficar assim, vês?» e nunca me passou pela cabeça fazer uma birra e dizer que não queria assim. Depois tirava-me as medidas, cortava o tecido e iniciava a confecção. Cerimonial complicado, levava pelo menos duas provas antes de ficar pronto.
Esse vestido, feito à minha medida, tinha sempre umas costuras muito largas e uma bainha também bem grande que era para quando eu crescesse se poder desmanchar e voltar a cozer mais à beirinha e assim acompanhar o meu crescimento. Operação essa que era feita pela menina Celeste, a nossa costureira ao domicílio. Nessa altura as meninas vestiam saias, os rapazes calções ou calças compridas, era um vestuário bem definido para cada género.Tenho a ideia de que a altura das nossas saias acompanhava um pouco a moda das senhoras, mas de um modo geral era com o joelho tapado e meias altas de Inverno ou soquetes de Verão. Mas havia vestidos muito bonitos, acredita. Com folhinhos, bordados, nervuras, preguinhas, e um dos enfeites que eu mais gostava eram uns entremeios arrendados onde passava uma fitinha. Ainda me lembro de um, de organdi com florinhas encarnadas que nas mangas e junto da gola tinha um desses entremeios com uma fitinha de veludo vermelha; eu achava-me linda com aquele vestido! Mas era para dias de festa, é claro. E durou anos!!! Mas a época era de economias e portanto os vestidos tinham de ser poupados, o que quer dizer que se vestia sempre um bibe por cima. Quando comecei a ir à escola tinha a bata mas, mesmo em casa e pequenina, todos os dias depois de lavada e vestida, vinha o bibe para proteger a roupa. Na altura brincava com uma menina (que nunca mais vi na vida!) filha de uns amigos dos meus pais com muito mais posses do que nós, e os bibes dela eram uma beleza, enfeitados com bordado inglês. Estás a ver? Podiam ser chics... mas eram bibes! Lembro-me que com os sapatos se usava o mesmo sistema de ser «para crescer», ou seja comprava-se o número acima e enchia-se a biqueira com algodão – à medida que o pé crescia ia-se tirando o ‘enchimento’. Por baixo do vestido andava um pouco entrouxada, além das cuecas (também feitas em casa) tínhamos uma camisola interior ou a 'camisa', só até à cintura, e a 'combinação' que acompanhava o vestido até abaixo.
Em síntese, a roupa era toda feita em casa, não havendo dois vestidos iguais, poupava-se muito usando o mesmo vestido durante muito tempo e vestíamos segundo o gosto das nossas mães.»
Clara

7 comentários:

Anónimo disse...

Que interessante. POr aquilo que aqui se lê, tratava-e de uma família de média burguesia, digamos assim. O facto de terem costureira em casa por exemplo, e outros pormenores que aqui se vão citando. Contudo a necessidade de poupar, devia fazer parte dos valores da época. Contam aqui muitas coisas nesse sentido.
Como o tempo mudou!!!!

Anónimo disse...

Li agora o comentário do King, e fico com algumas dúvidas sobre se concordo inteiramente. Havia realmente uma 'virtude' de economizar, tinha-se saído da guerra, mas por outro lado o que aqui a entrevistada da «Clara» conta é também o modo como se encarava uma criança, dando-lhe muito menos «PODER» do que hoje em dia. Quando ela diz que na sua família não lhe perguntavam a opinião sobre aquilo que ia vestir, é uma fiferença de 180º em relaçao à actualidade onde a criança mutas vezes é um pequeno tirano.
Se calhar nem tanto ao mar, nem tanto à terra...

Anónimo disse...

Acabei de chegar, e nem vou repetir os elogios sobre esta categoria - já sabem o que penso...
Fico a salivar com a continuação.
Para a semana é a moda feminina?
Aaaah...

josé palmeiro disse...

Era um tempo diferente, melhor, numas coisas, pior noutras. Melhor porque eramos mais novos, de tal forma que, ainda hoje recordamos, com prazer ao ponto de o compartilharmos, esse tempo da nossa meninice. No que me diz respeito, fui filho único, talvez pelas dificuldades em criar mais filhos, mas com o sexo masculino passava-se, algo semelhante.
Tinha uma avá, a paterna que era modista, tanto de homem como de mulher, ao ponto de ser, lá na terra, a modista das grandes famílias e eu ainda vesti algumas camisas e calções feitos por ela, apesar de vivermos noutra terra, e de só os ver de tempos a tempos.Havia, na família outras costureiras, a tia Eulália e a sua irmã Elvira e havia a Constantina a costureira lá de casa. Era assim mesmo como descreves, sei-o pelas minhas primas. Depois tinha um tio que tinha uma loja de fazendas, onde passava algumas horas dos meus dias, de forma a poder situar-me bem nessa realidade. Por outro lado, a minha mulher, é uma apaixonada por esses "costumes", chegando ao ponto de ainda termos vestidos, que ilustram esses tempos, bem como uns figurinos do início do século XX.

Anónimo disse...

A menina não tem quereres
Parte I-O primeiro vestido comprido
A caixa já por si é um portento.Uma antiga(muito antiga)caixa de alfaiate a que retiraram a pega e que mãos muito habilidosas forraram a cetim "champagne" e almofadaram.Lá dentro repousa o vestido que tendo sido do baptizado do meu avô e do meu pai me serviu também a mim.Aliás para falar correctamente eu é que devo ter servido o vestido de tal maneira a saia é imensa nas suas rendas de Bruxelas e passe-fites e naquela seda que arrepia ao passar da mão,"marfil" dizia-se quando era necessário referir a côr.A côr marfil tem hoje pequenas manchas amareladas e a lavandaria remete para uma especializada ali à Buenos Aires ou em Algés, talvez "os da antiga Cambournac"...A touca talvez primeiro "enformada",talvez o Rua no Rossio ainda faça.Os meus filhos não usaram este vestido porque se achou(com todo o respeito pelos sacramentos)que se quisessem ser baptizados o fariam em consciencia...e em vontade própria.Talvez os netos, quando e se os houver, e se ao significado se sobrepuser (nunca se sabe)o aparato da cerimónia só porque sim...AB

josé palmeiro disse...

AB, oportuníssimo o teu escrito,.
Quanto aos batizados, por cá, passou-se o mesmo. Coisas de gerações....

cereja disse...

Era isso, AB.
«Eu quero!» tinha na volta a resposta rápida «A menina não quereres!».
Bastante mais crescida conseguia traduzir (em pensamento, que em voz alta não me atrevia...) o que sentia e era «Eu tenho 'querer' não tenho é poder...»
É outro mundo! Quando hoje muitas vezes se tem de insistir com os pais para afirmarem a sua autoridade, para mostrarem aos filhos que eles, pais, têm QUERER e devem ter PODER, que muitas parece não haver nem uma coisa nem outra.
Zé palmeiro, que interessante o teu testemunho. para gente muito jovem, deve parecer estranho que, numa família com falas da tua sem grandes posses, também existisse uma costureira que ia a casa. Mas era realmente assim.
AB - é uma delícia essa do vestido de baptizado, que vai passando de geração. No caso da «entrevistada da Clara», pelo que sei acho tal não se pôs que havia ali um cheirinho anti-clerical na geração dos avós, e de indiferença religiosa na dos seus pais.
É bem lembrado do teu lado a ideia de que até pode acontecer que quando for dos teus netos tal se retome por esse «aparato da cerimónia» tal como se tem retomado os casamentos. Hoje em dia conheço pessoas que não sendo católicas se vão casar pela igreja porque é mais bonito...