Um Caderno de Capa Castanha XIV
Bom, madrinha, disse-me da última vez que, para a conversa não ficar muito prolongada, guardava alguns aspectos sobre o interior das casas para outra ocasião. Falta essa parte ainda…
«É verdade. Contei-te como eram as divisões habituais e falei de prédios que eu conhecia melhor, aqui em Lisboa, é natural que pelo resto do país algumas coisas fossem semelhantes mas outras nem por isso. Aliás quando contei como eram as casas onde passava as férias já se percebia que nem tudo era igual.
Chamei a atenção que talvez a casa de banho e a cozinha fossem as salas onde se nota mais este meio século de diferença. A casa de banho, uma só mas maior do que costumam ser hoje e com janela para o exterior, com lavatório, retrete, bidé e banheira, mas ainda sem água quente canalizada. Das torneiras saía água corrente, fria, e por vezes em cima da banheira havia um esquentador de onde se podia tirar água quente. Tirávamos com um jarro para o lavatório e bidé, ou logo para a banheira para o banho que era de imersão. O banho de chuveiro, o duche, surgiu mais tarde não era costume nessa época. Lembro-me da cozinha, espaçosa, com uma grande chaminé onde podia caber um fogão de ferro a lenha ou carvão, armários, mesa com tampo de mármore, mas sem tomadas eléctricas porque não era necessário. O ferro de engomar era a carvão, a roupa lavava-se no tanque e a loiça à mão em alguidares ou no lava-loiça. Iam ao mercado todos os dias para se ter alimentos frescos, e recordo um armário com porta de rede chamado «guarda-comidas» mas frigorífico só nos anos 50 - pesado e muito resistente. Nessa altura as coisas faziam-se para durar!
E olha que cada quarto devia ter uma mobília completa. Hoje escolhemos os móveis de que precisamos mas não há a necessidade de ter uma mobília completa em cada quarto. Contudo nessa altura era assim, e tal como certas divisões ‘desapareceram’ também alguns móveis deixaram de se usar.
Repara, um quarto de cama devia ter além da cama e mesinhas de cabeceira, um guarda-fatos – armário de duas ou três portas, com a do meio com um espelho – uma cómoda e um psiché com um banquinho. Tudo a condizer. Hoje só continuamos a usar cama e a cómoda, mas o guarda-fatos passou a roupeiro (bem maior) e desapareceu o tal psiché, móvel mais ou menos baixo, com 3 espelhos articulados e umas gavetinhas por baixo, em frente do qual as senhoras punham o pó de arroz e o baton e compunham a toillete. A cama também era diferente. A minha tinha um colchão muito duro chamado «enxergão» que servia de base ao colchão onde me deitava, colchão de lã, de pedacinhos de lã como saía das ovelhas. Muito fofinho – imagina que te deitas numa almofada gigante – mas ficava uma cova no sítio onde dormia… Portanto a operação de ‘fazer a cama’ era bem mais difícil do que hoje, tínhamos de «afofar» o colchão, meter os dedos entre a lã de modo a ficar mais solta - trabalho difícil.
A casa de jantar também tinha a sua mobília, para além da mesa, cadeiras, aparador, louceiro, existia uma cristaleira, como o nome indica para guardar os ‘cristais’ – um armário com três lados envidraçados e o fundo em espelho que também deixou de se usar.
O sobrado, em tábuas corridas, era encerado e o brilho puxado à mão o que era um trabalho também pesado. Para se poupar um pouco tanto trabalho usavam-se tapetes mas que também se tinham de tirar e ser batidos para se tirar o pó, na ausência de aspiradores…Talvez para se evitar algum deste trabalho, nas salas que se usavam menos, como a sala-de-visitas, ou quando se ia para férias, os móveis eram cobertos com tecido para se protegerem do pó.
Não era brincadeira o trabalho doméstico nestes anos!»
Clara
8 comentários:
Pode parecer repetitivo os nossos comentários, mas que remédio...?!
Continuo a achar que estes textos são um «serviço público». Eu, que já não estou na primeira juventude há aqui coisas que não sabia e outras que me fazes recordar. E ainda outras que sabia por ouvir contar mas é bem interessante vê-las escritas.
A minha avó tinha o tal psiché como o descreves. Horrendo! Se calhar hoje valia muito... Mas só era possível por as casas serem bem maiores, hoje não seria possível um movel ( ainda volumoso ) para a maquillage de uma dama! a gente pinta-se no espelho da casa de banho e pronto!
E essa dos colchões também havia de palha ou lá o que era. Contaram-me que para além de ser pouco confortável, aquilo fazia barulho com a palha a estalar quando as pessoas se mexiam.
Pronto, Emiéle, eu sou uma das pessoas para quem estes textos se destinam, aos post-25 de Abril!
Leio sempre isto como uma visita guiada ao passado. Bem melhor do que um filme porque está próximo de nós. Que giro.
E ainda a gente se queixa do trabalho de casa! Livra!!!! Afofar camas, esfregar a cera à mão, passar a ferro com ferro a carvão, ir à praça todos os dias, lavar a roupa no tanque.
Que sorte viver em 2007
Começo pelos comentários, para dizer à Joaninha, olá!, que tem razão, havia os colchões de palha de milho, eram mais frescos que os de lã, mas menos confortáveis e mais barulhentos. Depois, dizer à Gui, que sim que é bom viver em 2007, mas é bem melhor, para além disso, ter as vivências que aqui são relatadas, e poder partilhá-las com voçês todos, os que não viveram e os que viveram, essses tempos, que não são assim tão distantes.
Quanto ao escrito, dizer que com o falecimento dos meus pais e sogros, ficámos com algumas das "preciosidades", de que falas, como o guarda-fatos e o "psiché", com o banquinho, isto para além da célebre mesa de cozinha, com a pedra mármore, que tem cerca de sessenta e cinco anos. Como temos uma casa grande, deu para usar e digo-te, com muito gosto. O relato é bem fiel e permito-me introduzir mais uma recordação, o leiteiro. Não havia leite em pacotes, nem em garrafas, o leiteiro tinha uns grandes cântaros de lata, folha de flandres, para melhor identificarem, com uma torneira especial e uma bateria de medidas, que iam do litro ao centilítro, para assim poderem fornecer as quantidades pedidas. Era uma figura espantosa, de tal forma que ainda me lembro do nome do meu primeiro leiteiro, Carlos, excelente pessoa que cuidava dos animais com um especial carinho e duma simpatia e eficiência de enaltecer. Fico-me por aqui, com um grande beijinho à Clara e às sua recordações.
1º-Este texto tem material que nunca mais acaba.Material para meia dúzia de comentários.Como há que começar por algum lado cá vai...Se eu fosse francesa e tivesse o talento do Vian ou mesmo brasileira e estivesse "na bossa"arranjaria ritmo e humor para alinhar numa canção os objectos e materiais usados por exemplo numa limpeza...águarráz(água-raz),cardoa,sabão amarelo,escova de cerdas,palha de aço,flanelas amarelas,flanelas brancas,panos brancos e jornais,panos de lã,(para o lustro final)joalheiras,(para os joelhos da Sra.Maria dos Anjos)soda caustica,lexivia,lixas de várias espessuras (para as laminas das facas pelo menos duas)vassoura dura,vassoura suave,piassaba para os "cantinhos",pinceis para o pó dos relevos das madeiras trabalhadas,cera "Encerite"amarela para o chão de madeira e vermelha para as marquises e Solarine para os amarelos...bancos e escadotes qb. e no "lustre de cristal de saco bem como no espelho veneziano ninguém mexe" "tapa-se primeiro com lençois e eu limpo no fim"-palavras de pelo menos duas limpezas "a fundo" por ano a da Primavera com mudança de roupas de dentro dos armários e a de antes do Natal ,que não dava jeito nenhum ,porque as gavetas com os pontos escondidos por causa das notas eram despejadas em cima da cama e"toca a arrumar" "que isso já nem se abre"...Ah! a goma para as toalhas da época natalicia e os alfinetes pregados no pano da tábua de engomar,para esticar as rendas...e o rabo da Sra.Maria dos Anjos,a dias,(a rapariga coitada não pode fazer tudo sózinha)enchia o corredor de lado a lado numa dança para cá e para lá no vaivem das escovas e dos baldes(vejam lá se despejam com jeito senão fica tudo mais sujo que limpo".Se havia algum vislumbre terrorista na vivencia daquela casa eram concerteza estas alturas.Ab
Para quem goste de embalagens e saiba o que são cera Encerite" e solarine"Coração"ainda há à venda na drogaria da R.da Graça antes de chegar ao largo do lado direito.AB
Que descrições nostálgicas de todos vocês, fáceis de visualizar, quase sentindo o cheiro da cera e bolas de naftalina. Tb me recordo desses colchòes de palha e lã na casa de minhas bisavós e avós. Dos lindos baús, onde se encontravam preciosidades ainda do enxoval: lençóis bordados ou com aplicações de renda, colchas de cetim ou renda, toalhas de chá e de mesa bordadas...E não esquecer os antigos "santos" em redomas de vidro, agora relíquias...o antigo ou "castiço" pode tornar-se com o decorrer dos anos numa peça de arte...
Que sorte, Zé Palmeiro teres uma casa onde podes usar essas recordações! Porque como aqui se lembra, nas casas modernas, que muitas felizmente têm os roupeiros metidos nas paredes (cá por mim acho que assim também poupam tijolos!) mas o espaço «útil» depois da cama e mesinhas de cabeceira, quando dá para uma cómoda já não é mau! E uma cozinha onde cabe uma mesa dessas também é uma maravilha depois das kitchenettes que vemos por aí...
Quanto ao leiteiro e padeiro, creio que num texto mais antigo já me referi a eles. Mas como isto está um tanto desorganizado vai sendo publicado à medida que as recordações aparecem, deve estar já lá muito para trás...
AB, o teu «comentário» é tão completo que tem de saltar para a posição de post!!! De que cor queres escolher o teu caderno? :D O de «capa castanha» chamou-se assim por simples realismo, tal como se viu pela imagem inicial, mas tu mereces um outro só para ti!
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