Um caderno de capa castanha V
Olha uma coisa madrinha, tu falaste-me do teu Jardim-Escola (pelo que percebi uma decisão dos teus pais ‘avançada’ para a época) e do início da aprendizagem mas como era a escola, propriamente dita?
«Também há bastante que dizer. Os meus pais eram uns anti-fascistas convictos e cresci no meio de fortes críticas ao regime. Contam-me, disso não me lembro, que quando era pequenina e brincava com bonecas, ralhava-lhes dizendo “és má! És pior que o Salazar” o que dá ideia que para mim seria um símbolo do mal. E assim, a escola foi um problema por causa da Mocidade Portuguesa, os pais desejavam que eu fosse iniciada ‘nessa coisa’ o mais tarde possível! Assim sendo, estive até ao exame da 3ª classe numa escola privada, onde só havia actividades da Mocidade ao sábado de manhã e, sempre que era possível, conseguíamos escapar. Não me recordo de grande coisa a não ser uns exercícios físicos e bastante catecismo o que era novidade para mim. Mas esse colégio era caro para as possibilidades dos meus pais e entretanto descobriram uma Escola Oficial onde a directora também era de esquerda e, a pedido dos pais, conseguia que algumas alunas escapassem à Mocidade. Fui lá fazer a 4ª classe. Não
faço a menor ideia de como me conseguiram matricular, porque a escola era bem longe da minha casa… Todas as manhãs ia apanhar o eléctrico longe levando ainda mais meia hora para chegar à escola. E ia sozinha, com 7/8 anos. Havia maior sentimento de segurança e, por outro lado, creio que os pais desejavam que me tornasse tão autónoma quanto possível. Lá isso…! Comecei a ser autónoma muito novinha. Essa Escola foi muito importante, pelo que aprendi nas aulas é certo, mas mais ainda pelas lições de vida. Repara que, nessa época, uma menina com a minha origem social não costumava frequentar uma escola pública. Eu era a única lá com pais licenciados - a minha colega de carteira era filha de uma peixeira. Convidei-a para os meus anos e ela ficou deslumbrada, nunca tinha visto uma casa como a minha, coisa que me chocou muito. Quando terminou o ano percebi, cheia de surpresa, que mais de dois terços das minhas colegas não continuavam a estudar, ficavam apenas com a 4ª classe que era o indispensável. Foi um grande abalo, eu sabia perfeitamente que tinha ali colegas muito inteligentes e pareceu-me uma terrível injustiça eu ir para o liceu, algumas para a escola comercial mas a maioria voltar para casa. Mas porquê??? Os meus pais aproveitaram esse choque e explicaram-me o seu ponto de vista sobre a sociedade. Comecei então a ‘ser de esquerda’...Também é certo me revoltou ver os castigos físicos, que na outra escola não existiam. Por cada erro de ortografia era uma reguada na palma da mão, e com muita força que via as lágrimas e o medo de quem estendia a mão para apanhar. Eu escapei sempre, creio que o estatuto dos meus pais incutia algum respeito à senhora professora e por outro lado era boa aluna, tinha muito boas condições de estudo em casa.Claro que os sexos eram rigorosamente separados, as meninas numa escola os rapazes noutra, nem lhes passaria pela cabeça a 'pouca-vergonha' de uma escola mista! E também se usava sempre uma bata branca que tapava a nossa roupa pessoal, o que não era mau porque evitava comparações mas por outro lado ajudava a esconder as situações de maior pobreza, porque “olhos que não vêm coração que não sente”! Era ‘uma igualdade’ um tanto fictícia. Quanto às matérias de estudo, fica para outra conversa que há muito a dizer e esta, hoje, já vai longa» Clara 
(imagem daqui)








3 comentários:
Este "Caderno de Capa Castanha", tem muito que se lhe diga! Eu, fico deliciado, revejo-me nas coisas mais simples, por exemplo, quando se fala nas reguadas, elas eram o dia a dia, a mim calhou-me uma situação, um tanto ou quanto insólita. Por questões de residência dos meus pais, tive que mudar de escola. Na primeira aula que tive, na nova escola e para me iniciar, fui mandado a outra aula, buscar a "menina de cinco olhos", para que um dos meus novos colegas fosse castigado. Foi um dos piores momentos da minha vida, marcou-me de tal forma que as réguadas, dadas ao meu colega, me doeram tanto, quanto a ele.
Faz de facto impressão, não só o bater-se mas a naturalidade com que fazia.
Mas olha que, hoje não sei mas ainda há poucos anos, alguns professores continuavam a bater! Sei de vários casos de castigos físicos.
Pois é Emiéle, eu que não sou nada desse tempo (nem sei se os meus pais!...) parece-me estar a ler um romance.
Mas dito isto, acrescento que ando a gostar imenso!
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