domingo, junho 10, 2007

Um caderno de capa castanha

E ela, então, olhou-me com um leve sorriso:
«Sabes, Clara, penso por vezes que devia escrever as minhas recordações. Chamar-lhes memórias seria muito presunçoso, se calhar. É certo que me lembro com muita nitidez de aspectos da minha vida de criança que, hoje, para vocês, são “cenas da vida privada” como se estuda nos livros de sociologia. Repara bem, estávamos nos anos 40, o século ainda nem tinha chegado a meio.
E sabes o que me levou a pensar mais a sério em começar a escrever? Foi ter encontrado, quando desmanchei a casa depois da morte da minha mãe, um caderno da capa castanha, um velhinho “Caderno de Apontamentos”, ainda dos que diziam «Havaneza das Avenidas» com a respectiva morada. Era apenas um caderno escolar, como os dessa altura, já amarelado, grosso, com cerca de 100 páginas. Tinha escrito na primeira página uma data, o dia do meu nascimento.
Sabia que o caderno existia, tinham-me contado, mas a verdade é que nunca o lera. Aquele era o Diário do meu primeiro ano de vida. Consegues imaginar a emoção de ler, escrito com a letra do meu pai que também já não existia, o que ele tinha sentido quando olhou para mim a primeira vez?Fui concebida no início da guerra, porque nasci em meados de 1940. Sabes que penso que eu fui como um desafio dos meus pais, desafio à vida. O oposto ao aberrante grito de Viva la muerte! na época ainda muito recente.
Naquela altura já existia a Maternidade, mas eu nasci em casa. Em casa da minha avó, ali nas Avenidas Novas. O prédio ainda lá está, com uma porta de ferro forjado desenho Arte Nova. Mas, como te estava a contar, a primeira folha foi escrita pelo meu pai, apesar de todas as outras páginas já o serem pela mão da minha mãe. Na primeira estava registada a data e 10 da noite. Dizia “este foi um dia de inquietação e de esperanças”. Relembrava a chegada da parteira e contava como ele tinha ido logo para a rua. Olha que caminho se percorreu nestes sessenta anos… Hoje, o parto pode quase ser ‘em comum’. O pai ouve o primeiro som do seu bebé ao mesmo tempo que a mãe. Mas isso não passava pela cabeça dos meus pais, ele ali “só atrapalhava”. Começou então a subir e descer a rua olhando para a luz da janela. Já viste isso em filmes, não é? E estava ali no meu caderno, como subiu a correr a escada quando a luz se apagou e acendeu, a dar o sinal. E eu pude ler: -Tinha nascido uma menina! Anos mais tarde, fiquei com a certeza de que primeiro se tinha desejado um rapaz, mas naquele momento o que ali estava era de pura alegria, esquecida a possível desilusão.
No dia seguinte começa a narrativa da minha mãe. Uma linguagem muito romântica, mas recheada de pormenores por onde se podia seguir o meu dia a dia. Escrevia na cama, porque apesar de ter sido um parto fácil a minha mãe só se levantou passados 10 dias. E nota que era um casal desempoeirado, os dois licenciados, de esquerda… Mas era assim naquela altura. E lá vinham os pormenores: Pesavam-me todos os dias cheios de preocupação com o aumento de peso. Podia seguir a curva. E depois um dia sorri. Está lá! O dia certo e para quem sorri – afinal para a minha avó! Sabes bem que sempre adorei a minha avó. E também, rigorosamente, tudo que eu comia. Dia a dia. Imaginas o que é acompanhar o crescer de um bebé durante um ano, todos os dias?
E a disciplina rigorosa que se usava na época. Horas certas de comer, horas certas de dormir, horas certas de tomar banho e vestir. Está lá tudo. Um amor imenso mas nada de beijos por causa dos micróbios. Havia tuberculose, como sabes, e ainda não existiam antibióticos. Qualquer infecção podia ser grave. Tinha bordado por cima do berço “Se és meu amigo, não me beijes”. Li nas entrelinhas do Diário que essa regra não foi bem aceite pelas avós…
Esta narrativa diária durou 12 meses. O caderno termina com a minha primeira festa de anos, e a lista das prendas recebidas. Muitas prendas, mas brinquedos só 3. Um cãozinho de pano azul, um sempre-em-pé e um boneco de borracha. Também era o costume da época, vês? Ficariam de boca aberta se vissem a quantidade de brinquedos de uma criança de hoje. Quando li aquelas cem páginas, numa letra tão inclinada, vibrei com um testemunho tão real, tão vivo de uma época e dos seus costumes.
É boa ideia, não é, eu escrever também o que me lembro de quando era criança? Se calhar ensaio antes de escrever, contando-te primeiro a ti. Está bem?»


Clara

12 comentários:

Anónimo disse...

Há aqui gato...
O post doz que entrou há quase uma hora mas só o vi agora... ;D

Emiéle, aplaudo vivamente a tua decisão. No tempo do «velho» Pópulo, esta era uma «secção» de que gostava especialmente. Acho excelente que a continues, era uma coisa que lamentava ter desaparecido. E também concordo que o melhor é «começar do princípio» porque quem não te tenha acompanhado não entendia como é que isto tinhe começado.

Anónimo disse...

Venho atrás da Gui.
Eu pertenço aos noviços, não conhecia o pópulo-antigo.
Adorei, Emiéle!!!

josé palmeiro disse...

Como não entrava e só cá chegava o anúncio, respondi no anúncio.
Foi uma boa decisão, essa de voltares com o caderno de "capa castanha". Vamos ver no que resulta, da minha parte, tudo o que puder fazer para ajudar o projecto, fá-lo-ei.
Vê-se que já te passou a febre, ou então foi por causa dela!
Espero que já estejas em forma, como pareces!

Mar disse...

Epa, eu lembro-me disto...afixe?

Mar disse...

Hum....ruinas??

Mar disse...

:-))

sorry, distracção militante e tal.

méri disse...

Que bom!

cereja disse...

Meus queridos!!!
Gui, realmente isto deve ter entrado quando «anadavas por aqui» e se tinha hora antiga era que como é evidente 'já estava escrito'. Eu ontem não estava ainda nada bem, e só passei por aui numa corrida, a deixar aquilo, mas voltei prara casa, que estava ainda febril e mal disposta.
Mar! Isto é que é gato escondido com rabo de fóra!!! Tens toda a razão, originalmente foi publicado no Ruínas, há séculos. Mas como a pessoa entrevistada continua acessível, estou a pensar em continuar a série.

Anónimo disse...

Só quero aplaudir a iniciativa.
Já tinha lido estes mas primeiro não é demais voltar a ler (é impressionante o que a vida mudou!!!) e faz sentido retomares a série desde o início.
Força!

cereja disse...

Claro Joaninha, visitante mais fiel não há!
:D

Mar disse...

Adorei o retomar! ;-))
(e, na altura, só vim a saber quem era a clara muito mais tarde...) :-)))

cereja disse...

Claro, Mar. Mas a verdade é que não era suposto NINGUÉM saber... E já agora vou continuar esta série de entrevistas com a mesma «entrevistadora» para manter a dita 'sequência'