terça-feira, janeiro 30, 2007

Pudor e intimidade

A noção de pudor é humana e social. Os animais não sofrem disso e se uma pessoa vivesse isolada também não o devia sentir. Mas nós sentimos. Conforme a educação que tivemos, pode ser mais ou menos forte, assim como o nosso carácter pode acentuar ou atenuar essa sensação.
Nos últimos dias tenho pensado muito nisso e nos limites da nossa intimidade. Numa prolongada conversa que uma noite destas tive com uma amiga ela desabafou:
«Estou muito chocada, sabes? E afinal sem razão nenhuma, tudo se passa na minha cabeça. Lembras-te da Zé, a minha prima? Ela foi o primeiro bebé que eu tive ao colo. Tem uma diferençazinha de idade de mim, não muita mas o suficiente para quando nasceu eu a ver como um ‘bebé chorão’ – assistia ao banho, a mudar-lhe a fralda, a vestirem-na e tudo me maravilhava. Um ‘nenuco’ rechonchudo, cor-de-rosa, que se manipulava a rir e correspondia com sorrisos também. Agora está bastante doente e perdeu a sua autonomia. Está acamada, e tem de usar fralda. Estive no outro dia a ajudar a pessoa que lhe faz a higiene e portanto foi necessário despi-la para a lavar, mudar-lhe a fralda, limpá-la bem, pôr-lhe creme e uma fralda nova tal como em bebé. Mas aquela «exposição» da sua nudez e das suas pares mais íntimas causou-me um abalo!...Meti-me na pele dela, pessoa tão recatada, tão cuidadosa…Era a mesma pessoa mas olhamos para um bebé de um modo e para uma mulher adulta de outro, completamente diferente. Contudo tenho dúvidas. Será que isto são noções que tenho na minha cabeça…?»
Não sei se é apenas na cabeça dela que as coisas estão baralhadas, porque sinto o mesmo. O certo é que nos hospitais usam cortinas à volta das camas por causa dessa intimidade. E senti exactamente o mesmo que a minha amiga, uma vez que tive de ajudar na higiene da minha avó. O enorme respeito que tinha por ela não «encaixava» com a manipulação, mesmo que carinhosa, do seu corpo. Sentia que estava a ultrapassar os limites de intimidade, que é um direito que todos temos.
São sentimentos complicados, estes.

7 comentários:

Anónimo disse...

muito, muito complicados.
geri-los de forma a sobreviver-lhes parece-me uma missão quase impossivel.
gostei muito do post. é uma preocupação que nos atinge a todos porque nos pode atingir directa ou indirectamente a todos de uma maneira ou de outra, mais cedo ou mais tarde, mais dia menos dia.
M&M

cereja disse...

Obrigada M&M. Escrevi-o com alguma emoção porque me revi no desabafo da minha amiga. Também tenho andado ultimamente às voltas com pessoas doentes e muito carentes e não consigo «organizar» os meus sentimentos que parecem um novelo com muitas pontas.
(os blogs também servem para desabafos, não é? )

Anónimo disse...

Se fosse viva, a minha mãe teria feito, ontem, noventa anos.
Ao ler o teu escrito, revi-me nessa encruzilhada.
É muito, mesmo muito difícil!!!

cereja disse...

Só quis partilhar convosco este sentimento. Reconheço agora elo que vocês dizem que mais pessoas podem sentir o mesmo. Ainda bem, assim sinto-me mais acompanhada...

saltapocinhas disse...

A minha sogra teve um AVC com 91 anos e ficou, durante o ano e alguns meses que sobreviveu, em estado vegetativo.
O que mais nos custou foi precisamente essa parte da higiene intima, que deixou de ser intima.
E ela era uma pessoa tão ciosa, mas tão ciosa da sua intimidade que aquela situação me incomodava bastante.
Ao fim de algum tempo o meu marido já o fazia com a maior das naturalidades. Eu nunca o consegui fazer... Acho que a proximidade familiar nestes casos ajuda, não sei.
Tenho uma amiga que tratou do pai e duma tia sem ajuda de ninguém e diz que não lhe custava nada!
Ainda hoje com uma colega comentávamos que estas pessoas em estado vegetativo e terminal não deviam ser medicadas, a não ser para as dores ou algo que as incomodasse. Mas nada de comprimidos para o coração, para a tensão arterial e sei lá mais o quê! Na nossa socieadde "civilizada" as pessoas não podem morrer em paz! (se ela falasse acho que recusaria todos os remédios, pois nunca os quis tomar durante toda a sua vida!)

cereja disse...

É uma questão difícil, essa Sltapocinhas. Também penso que muitas pessoas que ficam nesse estado se tivessem consciência não queriam a «vida» prolongada dessa maneira. Devia haver o direito a deixar um testamento de vontades quando ainda estamos lúcidos a dizer essas coisas.
Quanto a isso de o facto de se ser mais próximo poder ajudar... deve depender da personalidade de cada um. Sei que no caso que contei, o da minha avó, ajudei a colocação de uma algália e senti-me muito incomodada.

JustAnother disse...

Tive uma avo e um avo que estiveram acamados antes de falecerem... e tambem assisti e participei em rituais diarios de higiene que me foram dificeis... confesso que nao tanto pela nudez em si, a qual me impressionou o primeiro dia e depois obriguei-me a um olhar mais clinico e desligado, mas pela exposicao do mais intimo que eles tinham, pelo estado de degradacao fisico a que tinham chagado e pela falta de dignidade de toda a situacao. E profundamente triste ver pessoas que foram pilares de forca e coragem toda a vida, reduzidas a uma cama e a boa-vontade de outros. Isso, mais do que tudo, custou-me. Por eles...

Por mim, fico contente por saber que, se alguem o tinha de fazer, ainda bem que fui eu e nao alguem sem qualquer amor ou compaixao por aquelas "quase-pessoas". Faleceram com sofrimento e dependentes, mas pelo menos, nao ficaram sozinhos no entretanto. A mim da-me algum consolo...