O «Caderno» da AB - Madame Santos Silva
(em adenda ao post Lingerie)
Depois das cuecas de cinco agulhas e passe-fite tinha-se passado à fase do “Interlock” - algodão canelado branco para camisolas interiores e cuecas. As combinações ainda eram feitas em casa e levavam bordadinhos simples mas mais tarde passaram a saiotes com cordão metido nos passe-fites para dar roda. E goma. E o Fitilho. O Fitilho foi o primeiro instrumento de tortura e constava de um bocado de fita de nastro que se atava à cintura durante a noite, com um nó para ….”fazer cintura”. Um dia em tom solene foi-me dito que ia começar a usar peças suplementares porque já estava na altura. Foi todo um ritual. E, nervosa, lá fui no mesmíssimo 24, que saia da minha rua para o Carmo, lá baixei à Garrett e subi, sempre com a mão da minha mãe no braço, o 2º andar, por cima do Eduardo Martins, irmão do Jerónimo das mercearias finas, à casa de Madame Santos Silva. (hoje prédio da Zara). A casa só por si era um espanto, muito francesa: portas altas lacadas a branco e ouro velho, bandeiras tapadas com peças de “petit-point” representando cenas pastoris e consolas douradas com mármore rosa onde repousavam, meio desenroladas para aumentar o desejo, peças de cetim e seda lisas e lavradas em tons pastel, e alguns pretos mate e cinza, suponho que para ousadias só de algumas…Tanto brilho cheirou-me a promoção da grossa e avancei para a zona dos brilhos como borboleta atraída pela luz. Que nem pensasse! Mas a que propósito? As meninas usam “batista”…Batista? E lá vieram uns tecidos de algodão com uns pequenos relevos de cor entre o rosa-carne e o branco. E depois fui esquecida na interminável discussão entre o com cós e o sem cós, com pesponto lateral ou sem pesponto lateral e marcação de prova para daí a oito dias. E uma ameaça a pairar que quase me paralisou: Ela é um bocadinho larga de anca, não será melhor aconchegar? Que talvez, veríamos na próxima. Veríamos. Habituada como estava a estes plurais sem futuro, rezei para que não resolvessem enfiar-me o outro instrumento de tortura chamado cinta, que eu via repousando nas gavetas de roupa interior da minha mãe (nunca a via em trajes menores, só em doença e de roupão) quando me atrevia a ir roubar meias altas que vestia escondida, no hall da escada, antes de sair para a missa e que pregava às pernas com adesivo na falta de melhor…. AB .
12 comentários:
Grande AB!!!
Não são já as minhas recordações, ou nasci mais tarde ou noutro meio, mas a descrição é fenomenal!
Nós «vemos» mesmo o que se está a passar.
AB, continuam em bom ritmo com as descrições, precisas, do tempo da tua/nossa, meninice. Apesar de me passarem ao lado, eu até sou filho único, mas como tinha primas, da mesma idade, os nomes conhecia-os.
Documentos importantes, continua. Importante, a forma como descreves o prédio da Madame Santos Silva, uma maravilha, que as chamas levaram.
Obrigada amigos pelo acolhimento.Joaninha a M.Santos Silva manteve-se até aos "latest sixties"e muita gente da nossa praça mandava lá fazer ,por exemplo,camisas de dormir de noiva,bordadas ou com "pailleTés"que custavam quási tanto quanto os vestidos própriamente ditos...AB
O meu servidor foi-se abaixo (coisa nunca vista!!!!) e estive sem acesso aqui ao Pópulo quase toda a manhã.
começo a ter mesmo ódio à netcabo!!!! não sei é se os outros são muito melhores...
Um texto magnífico. Já por aqui li, alguém que disse estar a coleccionar os textos do Era uma vez... e eu sou desses. tenho uma pasta onde os junto todos, just in case, se dá um badagaio ao Pópulo, ao memos não perco isto.
Dá um badagaio a QUÊÊÊÊ????? Vira essa boca para lá, ó agoirento!
:)))
Mas fico contente com essa 'recolha' King. Brincadeira à parte, é sinal de que tens gostado desta minha ideia de não deixar morrer recordações que ainda estão tão frescas nalgumas memórias.
Claro que tenho a sorte de a AB ter uma memória espantosa. Pelo que ando a constactar até mais fresca do que a entrevistada da Clara que começou esta série... Mas apesar de tudo acho que as duas se completam em certa medida.
Bravo, AB.
Adorei a 'história'
É que a li como uma história, e imaginei-te logo toda vaidosa a querer esses cetins e sedas...
O meu comentário entrou quase em simultâneo com o comentário/resposta da Emiéle. Para mim, penso que as duas visões se completam, não sei quem tem melhor memória nem tal me rala. São testemunhos que acho que não se debem perder, os dois.
Oh. Méri, não negas que és do Porto.
Ainda bem, os meus netos também são!
Zé Palmeiro, aqui nos comentários andam duas pessoas que assinam muito parecido - a Méri (que é realmente do Porto, e pelo que sei Méri é um diminutivo do seu nome verdadeiro) e a Mary que assinou aqui, e creio que o nick 'traduz'o nome de Maria. De qual das duas falavas...?
:)
Bem, eu não tenho comentado muito, principalmente estes posts do "Era uma vez" mas como já disse à Emiele e a quem lê os meu blog é uma categoria digna de ser publicada em livro. Eu juro que se vocês não se decidirem um dia ainda vou fazer essa proposta a uma editora para ela vos contactar!!!
A maneira como a Emiele e a AB fazem as suas descrições dá vontade de não parar no fim do post, o que só por si é óptimo!! E eu sou como o King, também os tenho todos aqui guardados, não que tenha medo que dê o badagaio aqui a este ponto de encontro, mas sim porque são posts dignos de serem gravados para ler e ler e ler e ler... Muitos parabéns às duas!
Ah é verdade, como não conheço nada, ou muito pouco, dos locais e hábitos que descrevem a leitura para além de ser óptima é uma maravilha para a cultura!
Olá a todos. Ando um pouco atrasada nestas leituras e comentários mas tb tenho gostado dessas histórias/estórias da Clara/Emiéle e AB. Tanto que me tem até ajudado a planear que forma usar para pôr em prática um projecto familiar que tenho já há um tempo em mente de escrever a minha história familiar. Começando pelas minhas avós paterna e materna que eram totalmente diferentes. A materna, ainda em vida, com quase 86 anos, nasceu numa época e meio cedo demais para as suas ideias revolucionárias e modernas, tendo de se conter muito, por os seus horizontes irem bem longe...Acho que só isso(as filhas,tias,netos,primos comentam incessavelmente sobre essas suas características, até a nível de vestuário)vale tb a pena deixar qualquer escrito na família.
Obrigada por me fazerem recordar e terem dado motivação para um dia eventualemnte executar esta "obra".
Enviar um comentário